Título: Hübner defende maior 'equilíbrio' no reajuste das tarifas
Autor: Hübner , Neuson
Fonte: Valor Econômico, 10/11/2009, Especial, p. B9
Desde que assumiu o comando da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o ex-ministro Nelson Hübner foi visto pelas empresas de distribuição de energia como uma indicação política, o que gerou temor em relação à estabilidade das regras do setor. A grande preocupação sempre foi a de que ele entrou na agência para alterar a forma de cálculo das tarifas. Veio então uma Comissão Parlamentar de Inquérito questionando as altas tarifas e as manchetes foram tomadas pelo imbróglio de uma falha na metodologia de cálculo.
Nesta entrevista concedida ao Valor, o diretor-geral da Aneel defende que se faça um parcelamento de componentes financeiros para evitar fortes reajustes como o do início do ano. Diz que o Tribunal de Contas da União (TCU) não deve tomar o papel da agência na regulação e que as distribuidoras ou o governo é que deveriam resolver se a receita obtida a mais pelas empresas com a chamada gordura da parcela A deve ser ressarcida aos consumidores. Mas ele alerta que os clientes de seis distribuidoras sairiam perdendo. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: O que a Aneel está propondo às distribuidoras?
Nelson Hübner: Quando a Aneel detectou o problema em 2007 procurou as empresas, pois entendeu que a solução ideal seria alterar os contratos de concessão. Mas as distribuidoras não aceitavam discutir o contrato, a não ser que fosse incluída nessa discussão uma série de outras questões. Acabaríamos levando anos para chegar em algum acordo. Agora estamos propondo fazer essa negociação bilateralmente com cada distribuidora, mas somente da parte da parcela A, sem outras discussões de contrato.
Valor: O problema foi detectado em 2007, mas desde quando ele vem acontecendo?
Hübner: Existe uma portaria interministerial de 2001, e que foi alterada posteriormente, criando a Conta de Compensação da Variação de Valores e Itens da Parcela A (CVA). Ela foi criada com o objetivo de proteger as distribuidoras, que eram totalmente responsáveis pela compra da energia e sofreram com o descolamento do dólar frente ao real, em 1999, e tiveram que honrar os pagamentos pela energia de Itaipu o ano inteiro, sem ter isso refletido em sua tarifa. Além disso, em 2001, as empresas estavam em situação precária. Dentro do acordo geral do setor, foi colocada a possibilidade de assegurar que as empresas não tivessem que arcar com esse risco. Essa portaria veio nesse sentido, mas não existia esse conceito da neutralidade da parcela A. Somente em 2004, quando a distribuidora deixou de ser responsável pela compra da energia, é que ficou claro esse conceito da neutralidade da parcela A. A portaria, portanto, foi feita em outro cenário legal e contexto de encargos - representava apenas 3% do valor da tarifa e agora são 13%. Além disso, na portaria está prevista a correção da distorção de mercado no componente financeiro da CVA, mas não a correção da base da CVA. Não havia intenção de corrigir os dois.
Valor: Como a distorção foi percebida dentro da Aneel?
Hübner: Foi uma reclamação de um distribuidor, que teve redução de seu mercado, e quando foi fazer a conta de quanto a Aneel concedeu de reajuste dos componentes financeiros para fazer frente aos encargos, ela verificou que não era suficiente para cobrir o que gastou com esses encargos. A Aneel viu então que de fato essa distribuidora tinha razão, mas percebeu que a distorção era para os dois lados. Foi quando tentamos fazer a correção via contrato de concessão, mas a maioria das distribuidoras teria uma perda. Sem acordo, a Aneel tentou fazer a correção pela portaria interministerial. Mas essa não é uma questão simples. Os ministérios responsáveis pela portaria (Fazenda e Minas e Energia) foram supridos com informações nossas e das distribuidoras e é razoável que tenham tido dúvida se, ao alterar essa portaria, não estariam afetando o contrato de concessão. A Aneel também tinha essa dúvida, mas nosso jurídico trabalhou muito para dar segurança à diretoria de que dá para mexer na portaria sem alterar o contrato.
Valor: Tem se falado somente nas distribuidoras que precisariam devolver recursos. Há muitas distribuidoras na situação inversa?
Hübner: Verificamos que 6 das 64 distribuidoras tiveram redução de seu mercado.
Valor: Quais são elas?
Hübner: Algumas são pequenas, mas posso dizer que consumidores de dois Estados brasileiros podem ter que pagar a mais, caso fique determinado que os valores tenham que ser ressarcidos.
Valor: A Aneel já fez os cálculos, ou tem pelo menos uma prévia, do impacto que as distribuidoras tiveram em suas receitas em função da gordura da parcela A?
Hübner: Ainda não temos um valor definitivo. Fizemos um cálculo preliminar, que não leva em consideração todos os aspectos que devem ser avaliados para chegarmos ao valor exato do impacto da falha metodológica. No próprio ofício que encaminhamos em julho deste ano ao MME, apresentamos um esboço do impacto da não alteração da metodologia no reajuste tarifário de dez empresas que passaram pelo processo neste ano. O valor total chegou a R$ 631 milhões de receita em um ano. Mas tem que ficar claro que esse cálculo levou em consideração apenas o impacto da CVA, e não da neutralidade como um todo.
Valor: O senhor afirmou que esse problema não é um erro...
Hübner: Não é um erro do cálculo. Essa fórmula que usamos é a que está lá, tanto no contrato quanto na portaria, e é a que aplicamos para calcular as tarifas. Então a gente tem que corrigir mesmo é o contrato. Corrigir não seria problema, se fosse erro de cálculo.
Valor: Mas o consumidor efetivamente pagou a mais?
Hübner: Se considerar esse desvio, sim. Pagou a mais quando houve crescimento de mercado maior que o ano anterior.
Valor: Ele deveria ser ressarcido?
Hübner: As concessionárias se manifestaram publicamente de que aceitariam fazer o acerto nesse erro metodológico. Se elas aceitam fazer isso, então cabe à Aneel tornar público esse processo. Nós vamos calcular os desvios causados por essa metodologia para as empresas avaliarem se aceitam devolver esse recurso. Já que se trata de dinheiro para encobrir encargos, essa diferença poderia simplesmente ser abatida da conta destes encargos nos próximos reajustes.
Valor: Então de certa forma o senhor defende a devolução.
Hübner: Como agente regulador, não defendo a devolução. Não houve erro no cálculo, porque seguimos uma fórmula. A não ser que alguém diga que a Aneel estava errada. Se as empresas reconhecerem esse erro metodológico, daí a Aneel tem condições totais de fazer esse acerto.
Valor: Poderia também ser uma decisão de governo?
Hübner: Sim, poderia. Dos ministérios da Fazenda e Minas e Energia, que fizeram a portaria. À Aneel cabe dar segurança jurídica e estabilidade regulatória no país.
Valor: Quando o senhor chegou na Aneel esse assunto já entrou na sua pauta?
Hübner: Logo no início me deparei com o problema. Somos responsáveis pela tarifa. Tanto que estamos sendo questionados em uma CPI. Essa distorção, entretanto, não é uma coisa simples de se entender. A gente estava também sendo acionado pelo Tribunal de Contas da União.
Valor: O TCU primeiro determinou que esse problema fosse corrigido. Depois voltou atrás e fez apenas uma recomendação. É isso?
Hübner: No primeiro acórdão mais forte (que determinou a correção), o TCU também não tinha entendido toda a questão. Fomos até lá, explicamos e eles entenderam. E hoje o TCU entende que não poderia ser resolvido daquela forma, por meio de uma determinação, e reformou o acórdão.
Valor: Como o senhor vê esse papel do TCU de revisor das revisões?
Hübner: O TCU faz o papel dele. Mas quando se trata de questão regulatória o tribunal precisa se ater a recomendações. Assunto regulatório é função da agência e não do TCU. Mas o fato de o tribunal analisar todos os processos que fazemos de reajuste e revisão tarifárias, e verificar se agência está cumprindo aquilo que está dentro de seus regulamentos, é extremamente saudável. É mais alguém fazendo isso, porque as próprias distribuidoras já fazem. Alguns órgãos de consumidor também. É importante alguém com olhar crítico verificando o que estamos fazendo.
Valor: Logo que o senhor assumiu a Aneel, as distribuidoras se preocuparam com o tom político de suas declarações, de que não poderíamos ter fortes reajustes como os do início do ano. Agora os consumidores acreditam que o senhor está a favor das distribuidoras ...
Hübner: Quando fazemos um reajuste, tem reclamação das empresas achando que estamos querendo a falência delas. Ao mesmo tempo, o consumidor reclama de que a tarifa está elevada. Talvez esse seja o indicador de que estamos cumprindo nosso papel. O agente regulador tem que buscar o equilíbrio, não posso favorecer nem um nem outro. Comemoro quando temos uma redução na tarifa, desde que também se permita à concessionária cumprir seu papel de forma adequada. Vamos publicar em breve os índices de qualidade das distribuidoras. Em alguns lugares, o consumidor paga mais, mas está mais satisfeito do que em outras regiões em que se paga menos.
Valor: O que o senhor sugere para evitar reajustes como os vividos no início do ano?
Hübner: Podemos usar o ajuste financeiro das tarifas para tentar neutralizar movimentos muito bruscos. Fizemos isso na prática, mesmo de forma não muito programada, na Enersul (distribuidora do Mato Grosso do Sul). Verificamos um erro na base da primeira revisão tarifária, que estava super avaliada e refletiu numa alta expressiva da tarifa. Aí a Aneel calculou retroativamente, e corrigiu para o futuro. É praticamente impossível devolver na conta do consumidor. Ele pode ter mudado de cidade, por exemplo. Então alteramos o componente financeiro para as próximas revisões. No caso da Enersul, se jogássemos o ajuste todo no primeiro ano teríamos uma redução brutal na tarifa da concessionária daquele ano, podendo gerar um desequilíbrio. No ano seguinte, a tarifa dava um salto imenso e ninguém ia lembrar que caiu 40% no ano anterior.
Valor: Era o que poderia ter sido feito no reajuste da CPFL neste ano, que foi um dos mais altos?
Hübner: O reajuste da CPFL foi praticamente financeiro, por causa de dólar que reflete a tarifa de Itaipu e encargos em função do acionamento das térmicas do ano anterior. Então, poderíamos não ter dado os 20% e a empresa ficaria com o crédito financeiro, reconhecido pela Aneel. No reajuste do próximo ano, se continuar esse cenário, com chuvas, queda do dólar, provavelmente a CPFL terá financeiro negativo e um reajuste negativo no ano que vem. Não seria mais racional, em vez de dar os 20% neste ano, dar 10% e evitar uma queda grande no próximo ano?
Valor: E é assim que a Aneel vai fazer nos próximos anos?
Hübner: Existe uma tendência a se fazer isso. Temos que evoluir.
Valor: O que mudará no cálculo das tarifas no ano que vem?
Hübner: Primeiro temos que resolver o problema atual. Mas para o ano que vem a grande discussão será para o terceiro ciclo de revisão. Queremos mudar os sinais que são dados. Temos preocupação muito grande hoje com qualidade de energia. No primeiro momento, o sinal dado foi de uma empresa de referência em que se corta isso, corta aquilo, corta tarifa, baixa tarifa. Mas aí você não tá casando isso com o nível de investimento, que é necessário para atingir determinado nível de qualidade no fornecimento de energia. É complicado cobrar da distribuidora um padrão de qualidade sem ter a tarifa adequada. E acho que alguns sinais que demos na última revisão tarifária são um pouco contraditórios nesse sentido.
Valor: E qual a meta até o final de seu mandato?
Hübner: A grande meta é ajudar no processo da discussão da renovação das concessões. A Aneel vai ter papel fundamental e com isso pode harmonizar todo um processo de definição da tarifa, de revisão e reajuste da energia velha. Com o país caminhando para o processo de estabilidade, e à medida que atendemos as necessidades básicas, com a universalização, poderemos reduzir encargos. Temos também que rediscutir impostos. Ás vezes se faz um esforço brutal para reduzir tarifa, mas na mesma medida os Estados aumentam alíquota de ICMS e todo o esforço de redução vai por água abaixo. O país vai ter que fazer essa discussão.
Valor: Diante da dificuldade de várias estatais do setor, o senhor aprovaria novas privatizações?
Hübner: É difícil falar se as dificuldades são por serem estatais ou privatizadas. Vemos estatais com bons resultados e empresas privadas extremamente eficientes. Como também há privadas dando prejuízo, com qualidade ruim do serviço, e estatais no mesmo caminho. Vamos cobrar a qualidade da tarifa e exigir o mesmo padrão para todas. Recentemente, chamamos os controladores destas empresas em dificuldades e exigimos um plano de recuperação. Não podemos deixar que se chegue a uma situação descontrolada.