Título: Sarkozy dá uma pausa em suas reformas
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Fonte: Valor Econômico, 24/11/2009, Especial, p. A14

Desde que entrou no Palácio do Eliseu, há dois anos e meio, Nicolas Sarkozy chamou a atenção no cenário mundial. O presidente francês restabeleceu a influência de seu país na União Europeia (UE) e solidificou as relações com o governo dos Estados Unidos, principalmente ao levar a França de volta à estrutura de comando militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Mesmo assim, embora ninguém possa acusar o hiperativo Sarkozy de indolência, no momento em que ele chega à metade de seu mandato de cinco anos há sinais crescentes de que seu esforço para reformar a França passa por um período de hesitação. E será por sua capacidade de reparar a economia, diminuir a burocracia e modernizar o sistema de bem-estar social que, em última instância, sua Presidência será julgada dentro e fora de casa.

Seu sucesso será crucial para as esperanças da Europa de competir com os mercados emergentes em crescimento acelerado e assim preservar os elevados padrões de vida com os quais os habitantes do continente europeu estão acostumados.

Sarkozy proclamou sua convincente vitória eleitoral, em maio de 2007, como um fim de décadas de conservadorismo e estagnação. De jeito nenhum ele iria usar seu tempo nos salões dourados do Palácio do Eliseu como os "reis preguiçosos" que o precederam, segundo disse o próprio Sarkozy, numa frase que ficou famosa no país.

Agora - segundo palavras suas - ele está sofrendo da "maldição" da metade do mandato. Sua popularidade caiu para 39%, segundo a mais recente pesquisa do instituto Ifop para a revista "Paris Match", o menor nível desde que ele assumiu. Ministros estão brigando em público. Deputados de seu partido, a UMP, de centro-direita, estão em pé de guerra por causa da reforma fiscal, da situação perigosa das finanças públicas e dos erros de julgamento do presidente - que incluem o escândalo da tentativa de seu filho de 23 anos, um estudante, de se tornar presidente da agência estatal que supervisiona o La Défense, o distrito financeiro localizado na periferia de Paris.

Dando apoio à rebelião está a consternação com um estilo de governo que, segundo os críticos, é centralizador demais, imprevisível, inconsistente e conduzido por cálculos políticos de curto prazo. A população ficou confusa depois que uma onda de reformas nos primeiros 18 meses de governo foi seguida por uma metamorfose, durante a crise econômica. Sarkozy transformou-se de um hesitante reformista defensor do livre mercado em um intervencionista.

Pelos padrões históricos, os problemas da metade do mandato do presidente são pequenos. A esta altura, em seu primeiro mandato, François Mitterrand havia abandonado a experiência com o socialismo e imposto medidas de austeridade dolorosas. A um ponto parecido, Jacques Chirac havia dissolvido a Assembleia Nacional, o que deu à oposição a chance de vencer as eleições e deixar o presidente sem maioria no Parlamento.

Mesmo assim, o esforço de reforma está cercado de dúvidas. A França está liderando a economia da zona do euro para fora da recessão, mas Sarkozy pouca coisa disse sobre como ele pretende governar depois da crise. Nem mesmo colegas no governo sabem como ele vai cuidar da bagunça que ficou para trás - acima de tudo, um déficit público crescente - e retomar seu programa de reformas antes das eleições presidenciais de 2012.

Isso está criando uma sensação de deriva. "No momento, não existe nenhum projeto para o segundo semestre", afirma um ministro. "Não há uma direção clara, e é por isso que estamos tendo todas essas turbulências."

Enquanto a maior parte dos líderes mundiais olha para a incipiente recuperação econômica com alívio, a recuperação antecipada da França é uma bênção ambígua para seu presidente. As turbulências financeiras e econômicas permitiram a ele brilhar como um administrador ágil e pragmático durante a crise, com a introdução de iniciativas em todas as frentes, do socorro aos bancos e montadoras a um apoio inovador às pequenas empresas. A recessão também mudou a percepção sobre a economia francesa e seu modelo social, transformando o que era visto como uma fraqueza - de forma mais notável o fato de os gastos públicos representarem 60% do PIB - em um ponto forte.

A recessão tem sido menos severa na França do que em qualquer outra grande economia europeia, com uma contração de algo entre 2% e 2,5% em 2009, segundo previsões do governo. O Estado do bem-estar social - com transferências sociais que chegam a 35% do PIB - vem provando seu valor, amenizando os piores efeitos da recessão e ajudando a estimular o consumo.

Sarkozy sustenta que a crise ainda não acabou. Mas a volta do crescimento mudou de foco as atenções políticas para os grandes desafios de longo prazo que a segunda maior economia da zona do euro enfrenta, e sobre a capacidade de Sarkozy em enfrentar esses desafios.

Muitos economistas acreditam que os aspectos do modelo francês que amenizaram a recessão - especialmente a pesada carga tributária e as mudanças sociais pagas por empresas e trabalhadores - também irão pesar sobre a economia na medida em que ela for se recuperando. "Nós protegemos os trabalhadores, o que é bom", diz Francis Kramarz da École Polytechnique. "Mas ao mesmo tempo, não tornamos a economia mais reagente à nova situação [de recuperação]."

Alguns críticos dizem que o histórico do presidente mostra que ele carece de disciplina e visão estratégica para diminuir a inflada administração estatal francesa, reduzir a carga tributária sobre as empresas e tornar o mercado de trabalho mais flexível. "Ele é mais um ativista do que reformista", afirma Zaki Laïdi da faculdade Sciences Po, de Paris. "Ele está interessado em se mexer, em passar a impressão de que está resolvendo os problemas - mas às vezes isso acontece a qualquer custo e nunca resulta no que ele prometeu."

Os instintos do professor Laïdi, parecidos com os de muitos que observam o ativismo frenético do presidente, são respaldados por um estudo profundo sobre as 1.222 reformas anunciadas por Sarkozy desde que ele assumiu o poder - que vão dos preços nos supermercados ao serviço diplomático. A análise do instituto Thomas More, um centro de estudos de Bruxelas, mostra que a qualidade das reformas que estão sendo implementadas começa a se deteriorar - em parte por causa da metodologia que está sendo usada no desenvolvimento dessas reformas.

O diretor do instituto Jean-Thomas Lesueur diz que Sarkozy "partiu para um "big bang" sem preparar sua administração e às vezes sem informar seus ministros. O trabalho necessário para preparar a opinião pública ou o Parlamento não foi feito". Isso ficou evidente em janeiro quando, para grande surpresa do ministro da Justiça, Sarkozy anunciou o fim dos famosos magistrados investigadores independentes da França.

No entanto, Nicolas Bavarez, um economista e historiador que vem criticando implacavelmente a incapacidade da França de fazer reformas estruturais fundamentais, diz que "o modelo econômico e social continua sendo a raiz do problema. E aí as reformas do presidente vêm sendo menos convincentes, em parte por causa da crise econômica, mas também porque ele vem adiando as reformas no setor público".

Christine Lagarde, ministra das Finanças, reconhece que o governo vem tendo que ceder, conseguindo "não 100% de cada ponto, mas geralmente 80%, porque tivemos que acomodar as resistências às mudanças". Mas ele acrescenta: "Quando você olha para a lista, percebe o quanto nós estamos sacudindo o país".

Há áreas em que as mudanças estão sendo sentidas. As empresas citam a série de medidas adotadas antes da crise, para melhorar a flexibilidade no mercado de trabalho, reparar as pesquisas públicas e o sistema universitário (que estão abrindo as portas para parcerias público privadas) e encorajar a inovação.

A Microsoft, a gigante dos softwares, diz que o crédito fiscal era o incentivo que ela precisava para alocar o centro de desenvolvimento do Bing, seu mecanismo de busca na internet, na França. "Foi um elemento determinante em nossa escolha", diz Eric Boustouller da Microsoft France.

Eric Boulay, fundador da Arismore, uma pequena companhia de serviços de tecnologia da informação e softwares, diz que outras medidas trouxeram benefícios inesperados - como quando o governo acabou com a semana de trabalho de 35 horas com uma lei que permitiu às empresas oferecerem horas extras para os funcionários sem terem de arcar com a maior parte dos impostos e encargos sociais. A medida aumentou os salários em 4% a um custo muito pequeno para Boulay. "É uma excelente maneira de competir contra as companhias maiores pelos talentos", diz ele.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) dá crédito a Sarkozy for afrouxar algumas restrições trabalhistas, mas diz que levará anos antes de as medidas começarem a render frutos.

Mas alguns líderes empresariais afirmam que a França já está mudando, graças à determinação do presidente de enfrentar interesses estabelecidos, como a reorganização em andamento da "taxe professionnelle", um imposto local que penaliza os investimentos das empresas. "Você prefere os políticos ou os estadistas?", pergunta o presidente de uma empresa. "Ele está pronto para se manter firme e ser impopular. Seu antecessor disse: "Farei apenas uma coisa de cada vez e nada quando os tempos forem de dificuldades". Vivemos tempos de dificuldades."

Mesmo assim, as reformas continuam à margem, afirma André Zylberberg, economista da Sorbonne e coautor do best-seller "As Reformas Fracassadas do Presidente Sarkozy". "Nada mudou. As horas extras livres de impostos não funcionaram porque as pessoas não estão trabalhando mais. Todo mundo saiu ganhando, menos o Estado, e isso está custando muito caro ao Estado."

O temor é que o calendário eleitoral torne uma reforma ampla ainda menos provável. O UMP enfrentará eleições regionais potencialmente difíceis em março de 2010, e 2011 será dedicado à preparação da campanha para a reeleição do presidente. Poucas reformas econômicas ou sociais estão programadas para a segunda metade do atual mandato de Sarkozy. Funcionários graduados do governo afirmam que não haverá mais tentativas de mudar as leis trabalhistas enquanto o desemprego - que deverá alcançar os 10% até o fim do ano - continuar elevado.

Um do apetite por reformas do presidente acontecerá no ano que vem, envolvendo o sistema previdenciário, que terá um déficit de 3,1% do PIB até a metade do século. Teme-se que Sarkozy venha a adiar uma decisão, mas um funcionário graduado do governo disse ao "Financial Times" que o presidente vai prosseguir - provavelmente ampliando os períodos de contribuição, em vez de aumentar a idade de aposentadoria atualmente em 60 anos. A reforma da previdência é urgente porque qualquer déficit grave - esperado para atingir 8,5% no ano que vem -, através de aumento dos impostos ou cortes nos investimentos, seria politicamente perigoso, segundo o funcionário do governo.

O governo está confiando no retorno do crescimento econômico e no aumento da receita fiscal para conter o rombo no médio prazo. Mas o peso do financiamento do déficit público vai frear esse crescimento em potencial, afirma Laurent Vronski, cuja Ervor Group é a última grande fabricante de compressores de ar da França. "Estamos claramente em desvantagem em relação a países como a Alemanha por causa disso", afirma ele.

Segundo a lei orçamentária de 2010, que está em tramitação na Assembleia Nacional, a França estará com um déficit de 5% em 2013, levando a relação do endividamento sobre o PIB para perto de 100%. O primeiro-ministro François Fillon prometeu na semana passada "ajustes muito grandes" nos gastos a partir do ano que vem, mas não deu muitos detalhes sobre esses ajustes.

Sarkozy tem feito uma aposta política ao tomar mais empréstimos, com planos de reforçar o potencial de crescimento de longo prazo, com o lançamento de um bônus nacional para investir entre ¿ 25 bilhões (US$ 37 bilhões) e ¿ 50 bilhões em pesquisas, inovação e infraestrutura de alta tecnologia. Mas isso vem despertando preocupações com o aumento do endividamento.

"Se não estabelecermos um horizonte razoável para a redução do endividamento, um de nossos oponentes fará isso primeiro e isso vai nos prejudicar muito", diz um ministro.

Os otimistas acreditam que o presidente está simplesmente esperando o retorno do crescimento sólido, uma queda no desemprego e uma redução das tensões sociais, antes de embarcar nos próximo estágio de seu esforço de modernização. "Mudamos imensamente as zonas de conforto e a falta de flexibilidade que era inerente de nossa economia", diz Christine Lagarde. "Não vamos parar agora."