Título: Sem inspeção, carro poluente sobrevive, mesmo com IPI verde
Autor: Olmos , Marli
Fonte: Valor Econômico, 27/11/2009, Especial, p. A16

A decisão do governo de prorrogar o IPI reduzido para carros flex até março certamente colocará mais automóveis novos e limpos nas ruas. Mas o Brasil está ainda muito distante das soluções encontradas por outros países, por meio das quais o veículo velho precisa sair de cena para dar espaço ao mais seguro e menos poluente. Todas as propostas nesse sentido esbarram na falta de inspeção, uma discussão que se arrasta há pelo menos 12 anos, época em que se criou uma lei para fiscalizar os veículos em circulação. O tema tem sido discutido com frequência. Já existem iniciativas isoladas, como o programa de vistoria ambiental na cidade de São Paulo, que entrará na segunda fase em 2010. Mas há ainda muito a ser definido antes de o país de fato colocar em prática uma verdadeira renovação da frota.

O país está bem atrasado se for levado em conta que das dez maiores frotas do mundo, a brasileira é a única que não conta ainda com inspeção obrigatória. O Brasil está no 10º lugar nessa lista que inclui não apenas regiões desenvolvidas, como Estados Unidos, Japão e Alemanha, como a também emergente China.

Quando se trata da renovação da frota - um plano para o qual a inspeção veicular deve servir de base - existe um consenso na comunidade automotiva de que no Brasil seria melhor lançar um programa mais simples do que nos países que já têm tradição no assunto. Na Europa, os programas de incentivo preveem a troca direta do carro usado por um veículo zero quilômetro. No Brasil, especialistas e executivos do setor automotivo defendem a criação de etapas. Dessa forma, o dono de um automóvel de 15 anos, por exemplo, receberia uma bonificação do governo para trocá-lo por um de dez anos. O proprietário desse modelo de dez anos de idade, por sua vez, daria o veículo como parte do pagamento de um mais novo, de cinco anos.

"Seria uma espécie de cascata até chegar no carro novo", afirma Henry Joseph Jr., presidente da comissão de energia e meio ambiente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). "Existem exemplos de programas na França, Portugal e Itália que podemos seguir; no entanto, para o Brasil, precisamos criar um modelo de renovação mais simples, começando pelo veículo seminovo", diz o vice-presidente comercial da Renault, Christian Pouillaude.

Não há como pôr em prática a renovação de frota, porém, sem antes regulamentar a inspeção veicular, única forma de tirar das ruas os carros sem condições de circular e de exigir o reparo dos que precisam de manutenção.

A chamada Inspeção Técnica Veicular (ITV) está prevista no Código de Trânsito Brasileiro (lei 9.503, de 1997). Posteriormente, surgiu o projeto de lei 5.979, de 2001, que trata de "atestar as reais condições dos itens de segurança e de controle de emissão de gases poluentes e ruídos da frota". Oito anos depois, o projeto ainda continua na fila de inclusão na ordem do dia para votação no plenário da Câmara.

A Câmara dos Deputados também conta com uma comissão de viação e transportes, que eventualmente discute o assunto em audiência pública. O último encontro foi no dia 14 de outubro. Interessados no tema é o que não falta. Um frequentador assíduo é Antônio Carlos Bento, coordenador do Grupo de Manutenção Automotiva (GMA), uma organização que reúne representantes dos fabricantes de peças e das empresas que prestam serviço de reparo, como oficinas.

Enquanto a lei não chega, Bento compara a sua atividade em defesa da manutenção preventiva ao "trabalho de um monge". Toda a vez que precisa falar sobre o tema, ele prepara um verdadeiro arsenal de informações. O GMA coleciona argumentos de todo o tipo. Desde os econômicos, que tornam mais evidente o interesse dos fabricantes de peças no assunto, até os ambientais e sociais.

O grupo calcula que o país poderia economizar algo em torno de R$ 8 bilhões por ano, por meio da redução dos fatores que provocam acidentes. No Brasil, morrem 35 mil pessoas no trânsito por ano. É o quinto lugar no planeta. Para cada 10 mil acidentes, a média de mortes é de 12,4 no Brasil enquanto que na Europa são 2,7. A média mais baixa do mundo é no Japão, com 1,77. Mas o Brasil também perde para outros países fora do Primeiro Mundo, como a Costa Rica (2,8), que regulamentou a inspeção em 2003.

Se o governo federal acha que ajudou o ambiente prorrogando por mais três meses o IPI mais baixo para carros que podem receber etanol, o Instituto Brasileiro Veicular (IBV) afirma que, com os motores que circulam nas regiões metropolitanas regulados, haveria redução de 5% no consumo de combustíveis e de 30% nos poluentes.

"Julgamos que o país já está maduro para isso", afirma Bento. Ele diz que essa modalidade de fiscalização é feita em 50 países. Nas discussões sobre o tema, é comum aparecerem afirmações de que proibir a circulação dos carros sem manutenção poderia trazer prejuízos políticos, principalmente em véspera de eleições. Mas Bento diz que "esse temor parece ter desaparecido"

As iniciativas municipais podem ser o primeiro grande passo. A cidade de São Paulo criou este ano o programa de inspeção ambiental. Para testar o sistema, no primeiro ano foram verificados apenas os carros mais novos. Portaria publicada este mês, contudo, determinou que o programa valerá para toda a frota do município já no próximo ano. No Rio de Janeiro, é feita uma avaliação visual do veículo, que serve para detectar, por exemplo, pneus carecas.

Uma inspeção técnica completa obrigatória ainda não existe em nenhuma parte do país. Numa avaliação completa, tão importante quanto a questão dos poluentes é a verificação do funcionamento adequado de componentes ligados à segurança, como direção, freios, suspensão, pneus e rodas. Usando a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) como referência, somente o sistema de freios envolve a verificação de 28 itens. No conjunto de sinalização, são 44 itens. A iluminação envolve outros 23 e, sozinho, o conjunto de eixos e suspensão, mais 33 itens.

Para transformar a vistoria dos carros em lei, no entanto, o governo precisa resolver muitas coisas. Primeiro, é preciso garantir a infraestrutura dos pontos de vistoria. Um entrave são as multas. Pelas normas de trânsito do país, não se pode dar baixa num carro antes de quitar as multas, mesmo que o veículo só sirva para sucata. Joseph Jr., da Anfavea, diz que seria preciso mudar essa legislação, para permitir que as multas sejam transferidas para uma pessoas física ou jurídica.

"Às vezes, o diabo morre no detalhe", diz o vice-presidente da General Motors, José Carlos Pinheiro Neto. Ele lembra o grande número de veículos com dívidas com o IPVA. "Há correntes que defendem o cancelamento dessas dívidas no caso de um carro que não pode mais circular, mas outros acreditam que isso pode estimular a infração", destaca o executivo. A GM é uma das montadoras que há tempos participa das discussões sobre destinação dos veículos.

Nas discussões da renovação da frota, a forma de incentivar a troca de carro também não está clara. Este ano, durante a crise, os governos de alguns países, como Alemanha, ofereceram bônus para estimular o consumidor a comprar automóveis mais econômicos. Estratégias semelhantes estão sendo estudadas para os futuros carros elétricos.

Uma questão importante para um país que pensa em deixar nas ruas apenas veículos com manutenção em ordem é encontrar um destino para os que não servem mais. O Centro de Experimentação e Segurança Viária (Cesvi) trabalha com a proposta de organizar uma reciclagem. Grupo de origem europeia, o Cesvi já trabalha com reciclagem em outros países, como Espanha e Argentina.

Nesse processo, o veículo passa por uma descontaminação, com a retirada de fluidos e gases. As peças que não podem ser aproveitadas são recicladas. No caso, a matéria-prima serve para a fabricação de outros produtos. As partes que podem ser reaproveitadas, como peças de reposição em outro veículo, são tratadas e vendidas.

Segundo o diretor de operações do Cesvi, José Aurelio Ramalho, esse centro de pesquisa dedicado à reparação automotiva e à segurança viária já começou a negociar com grupos interessados em investir na reciclagem. "Nesse sistema, as peças ligadas a sistemas de segurança, como disco de freio, por exemplo, não podem ser reaproveitadas. Mas há uma infinidade de partes, como capô e portas, que podem voltar para o mercado", afirma Ramalho. A ideia, segundo ele, é criar um certificado de procedência, colocar uma espécie de selo na peça que passou por um processo de reciclagem correto.

O executivo lembra que no Brasil apenas 1,5% dos veículos que saem de circulação passa por reciclagem. Já na Europa e nos Estados Unidos, o índice de reciclagem chega a 95%. Para Ramalho, a sociedade brasileira está hoje muito mais preparada e poderá facilmente se adaptar a todo o processo que envolve a inspeção e renovação da frota.