Título: Proposta de repatriação enfrenta resistências
Autor: Prestes , Cristine
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2009, Política, p. A6

Engavetada por duas vezes desde que surgiu, a proposta de permitir a repatriação de ativos enviados ao exterior ilegalmente nos últimos anos mediante a concessão de benefícios fiscais e penais já começa a sofrer resistências logo no início de sua tramitação no Congresso Nacional. Recém-chegado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o projeto de lei que prevê a repatriação recebeu duas emendas do relator, deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), que retiram do texto boa parte do atrativo que exercia sobre possíveis interessados em trazer de volta dinheiro não declarado hoje localizado fora do país. Em outra frente, setores que atuam no combate à evasão de divisas e à lavagem de dinheiro já avaliam a proposta com preocupação.

Tramitam hoje no Congresso dois projetos de lei que preveem a repatriação. No Senado, o Projeto de Lei (PL) nº 354, de 2009, de autoria do senador Delcídio Amaral (PT-MS), foi reapresentado com alterações e teve o prazo para emendas concluído no fim de agosto mas até agora não passou por nenhuma votação. Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Finanças e Tributação aprovou em setembro o PL nº 5.228, de 2005, de autoria do deputado José Mentor (PT-SP), apensado ao PL nº 113, de 2003. Ainda que com algumas diferenças, as duas propostas têm como principal atrativo a redução de alíquotas de Imposto de Renda (IR) e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para quem trouxer o dinheiro de volta ou mesmo declarar o dinheiro que mantém no exterior e a anistia penal para os crimes de sonegação fiscal e evasão de divisas que cometeu ao remeter os recursos para fora ilegalmente.

São justamente esses dois pontos que receberam propostas de emenda do relator Arnaldo Faria de Sá na CCJ da Câmara. Uma delas retira os benefícios fiscais da repatriação e equipara as alíquotas de IR previstas no projeto às praticadas hoje. Assim, as alíquotas de 15% para quem declarar os recursos, mas os mantiver no exterior, e de 10% para quem repatriar os valores, previstas no projeto de lei, passariam a ser, com a incorporação da emenda, as mesmas da lei atual: 27,5% para pessoas físicas e 34% para empresas, além de todos os encargos e multas cobrados de quem não declarou os valores.

O deputado Faria de Sá, que se diz favorável ao projeto de repatriação, afirma que não é preciso benefício fiscal para que surja interesse na repatriação dos recursos não declarados. "Esse dinheiro não está rendendo nada lá fora", diz. Na justificativa da emenda, o deputado argumenta que a concessão de alíquotas menores fere os princípios da isonomia tributária e da capacidade contributiva previsto na Constituição Federal. "Os contribuintes de que estamos tratando lidam com enormes volumes de recursos e estão sendo beneficiados com tratamento tributário irrisório", afirma, na justificativa da emenda.

A segunda emenda proposta pelo relator do projeto prevê que o recolhimento dos tributos feito na declaração e na repatriação dos ativos no exterior deve ser acompanhado da identificação da origem dos recursos. Pelo texto original do projeto, o ato de declarar os valores é acompanhado de uma declaração de que o dinheiro não é proveniente de crimes como tráfico de pessoas, órgãos e drogas, contrabando de armas e pornografia infantil, entre outros - o que, pela justificativa do deputado, não traduz segurança jurídica suficiente à sociedade por ser um ato unilateral, sujeito à fraude e falsidade. "Quero dificultar o ingresso de dinheiro de tráfico de drogas", diz Faria de Sá.

O autor do projeto que tramita na Câmara, deputado José Mentor, garante que a anistia fiscal e penal existirá apenas na evasão de recursos provenientes da sonegação fiscal, como o texto da proposta prevê, e que o dinheiro fruto de crimes como tráfico de drogas e contrabando não pode se beneficiar da lei. Segundo ele, em caso de indícios de que os recursos trazidos de volta não são oriundos de sonegação, a pessoa ou empresa fica sujeita à punição pelo crime que deu origem ao dinheiro e também pelo crime de evasão fiscal. Relator da CPI do Banestado, que apurou um esquema gigantesco de evasão de divisas por meio das contas CC5 do banco em 2003, Mentor diz que houve casos em que pessoas "esfriaram dinheiro quente", ou seja, valores declarados, mas que foram enviados para fora do país por meio de doleiros - em uma época em que havia restrições à remessa de divisas ao exterior - por conta de diversos planos econômicos fracassados que acabavam reduzindo ou confiscando o patrimônio dos contribuintes.

Ainda assim, especialistas afirmam que é praticamente impossível identificar a origem do dinheiro repatriado quando ele já está legalizado no sistema financeiro no exterior, o que impediria separar o dinheiro da sonegação daquele proveniente do tráfico de drogas, por exemplo. Isso porque tanto o sonegador quanto o traficante utilizam estruturas semelhantes para remeter recursos ilegalmente para fora do país: empresas de fachada e empresas off-shore, das quais não se conhecem os sócios, e têm doleiros em comum. "Não há uma conta bancária no nome do Fernandinho Beira-Mar", afirma o delegado Luís Flávio Zamprogna, que atua na divisão de crimes financeiros e de lavagem de dinheiro da Polícia Federal, referindo-se ao traficante Luiz Fernando da Costa, que já soma 100 anos de pena de prisão e está preso desde 2001. "É muito difícil para os órgãos de fiscalização distinguirem o dinheiro proveniente de sonegação fiscal do dinheiro vindo do tráfico de drogas", diz Zamprogna. Segundo ele, depois que o dinheiro saiu e circulou por vários países, entre eles paraísos fiscais, não se acha mais a origem. A Colômbia, onde Beira-Mar foi capturado, já foi palco do problema: economistas estimam a entrada de bilhões de dólares provenientes do tráfico de drogas durante um programa de repatriação de ativos mediante anistia feito em 1993 para atrair investimentos no país.

É por esse motivo que a proposta brasileira de repatriação não é bem vista por procuradores, juízes e policiais federais que atuam no combate a crimes contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro. Ainda que não haja uma posição oficial das entidades de classe a respeito dos projetos de lei, já há discussões internas sobre o tema. Entre membros do Ministério Público e da Justiça que atuam diretamente em processos que envolvem crime de evasão fiscal a oposição à proposta é clara. "Existe uma involução, uma cronologia de benevolência em relação aos crimes fiscais no país", diz Fausto Martin De Sanctis, juiz da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo responsável pelo julgamento de alguns dos mais importantes processos por crime contra o sistema financeiro nacional em andamento no país. "A lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional vem sendo duramente atacada", afirma.

Da mesma posição de De Sanctis compartilham procuradores que atuam em inquéritos relacionados a crimes financeiros. "Os projetos de repatriação são absurdos, são uma vergonha", diz Rodrigo de Grandis, procurador da República que atua no Ministério Público Federal em São Paulo. "É o tipo de benefício penal que só se aplica ao crime do colarinho branco", afirma. "Se a evasão fiscal não tem mais relevância, que seja retirada da lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional." Para a procuradora da República Karen Louise Jeanette Kahn, que atua nos processos gerados pelas operações Suíça e Kaspar I e II, realizadas pela Polícia Federal para investigar esquemas de evasão de divisas por meio de doleiros e de escritórios de representação de bancos suíços instalados no Brasil, os projetos não resolvem o problema e estimulam as pessoas a continuar enviando recursos para fora do país ilegalmente. Segundo ela, a anistia penal à evasão impede o combate a um crime que foi intensificado nos últimos anos.

"Nossa maior preocupação é a extinção da punibilidade dos crimes de evasão e sonegação prevista nos projetos", diz o juiz federal Fernando Mattos, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Segundo ele, a entidade está discutindo o tema e já fez um pedido para ser ouvida na CCJ da Câmara, onde o projeto aguarda parecer do relator. "A proposta pode transformar dinheiro ilícito em dinheiro lícito", diz. De acordo com o delegado Luís Flávio Zamprogna, o grupo que compõe a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), da qual faz parte, emitiu já no ano passado, quando a proposta de repatriação esteve em discussão, uma nota técnica se posicionando de forma contrária aos projetos.

O contraponto é feito pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que reúne membros do órgão nos Estados e também no âmbito Federal. José Carlos Cosenzo, que preside a entidade, afirma que foi criada uma comissão interna para discutir a proposta, que chegou à conclusão de que ela precisa ser aperfeiçoada, mas é viável. "É uma opção que o Estado tem que fazer, e é uma opção muito séria", afirma Cosenzo. "Nós não fazemos a lei, mas se a lei permitir a anistia, será cumprida", diz. "O que não podemos é judicializar a conduta do Parlamento." Segundo o presidente da Conamp, "no mundo todo projetos de repatriação como esses tiveram sucesso". Ele se refere a experiências do tipo realizadas na Alemanha, Argentina, França e Espanha. Além desses países, a Itália aprovou recentemente uma anistia à repatriação e, nos Estados Unidos, está em andamento um programa de revelação voluntária de valores não declarados que prevê o pagamento de impostos devidos nos últimos seis anos, com juros e multa, em troca de livrar os contribuintes de processos criminais.

Segundo o Departamento de Justiça americano, cerca de 7,5 mil americanos com ativos não declarados no exterior revelaram suas posições até a primeira quinzena de outubro. O país também abriu um precedente inédito recentemente ao conseguir um acordo com a Suíça para que o banco UBS revele detalhes sobre 4,45 mil contas bancárias com recursos suspeitos de serem fruto de sonegação fiscal.