Título: Honduras, um tropeço maior que as pernas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 07/11/2009, Opinião, p. A14
A crise em Honduras parece caminhar para uma solução muito diferente da que apostava o governo brasileiro. Como resultado (ruim), para o Brasil, ficou a constatação de que a capacidade de atuação e de projeção de poder no espaço latino-americano é muito inferior à ambição do Itamaraty. Ficou também um hóspede incômodo, o presidente deposto, Manuel Zelaya, que da embaixada brasileira comandou uma fracassada tentativa de boicote às eleições em Tegucigalpa, e que continua por lá, sem pouso certo, impedido pelo Congresso do país de voltar à Presidência no tempo que resta até a posse do eleito.
A condenação ao golpe de Estado realizado em Honduras foi uma decisão correta do governo brasileiro; em um continente conturbado, de instituições para lá de imaturas, não se pode aceitar o uso das forças militares para a retirada de presidentes incômodos, mesmo que a ação seja respaldada por agentes políticos. A comunidade internacional, com raras exceções, não teve dúvidas em classificar como golpe o que golpe foi.
Faltou, porém, ao governo brasileiro, visão mais coerente sobre como lidar com as eleições presidenciais, que já estavam marcadas antes do golpe contra Zelaya. Tentou liderar uma condenação irrevogável ao resultado das urnas, e se vê, agora, tateando um caminho para lidar com o fato consumado.
Declarações das autoridades, o assessor da Presidência, Marco Aurélio Garcia, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, e, mais recentemente, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, indicam que o governo ensaia argumentos para reconhecer o futuro governo - de resto, reconhecido por quem importa em Honduras, os Estados Unidos. Sabem, todos, que o presidente deposto não voltará, é peça descartada na política hondurenha. Importa, para ele, agora, negociar uma anistia ou outra forma de escapar a sanções pelos supostos atentados que teria cometido contra a Constituição, no período em que ainda exercia o poder, antes que a oposição apelasse ao fuzil para sacá-lo do palácio.
Não procedem as comparações entre o caso de Honduras e o Irã. No Irã, quem governa de fato e de direito, com ou sem Mahmoud Ahmadinejad, é uma teocracia, dos aiatolás. O abominável desrespeito a direitos humanos básicos segue o padrão de outros países teocráticos do Oriente Médio; as condenáveis fraudes eleitorais não são muito diferentes de outras na região, e, infelizmente, têm correspondentes no chamado mundo ocidental. É da tradição do direito internacional considerar essas aberrações assuntos da política interna dos países.
Se o Irã tem particularidades que não autorizam comparação, elas também não justificam que o mesmo governo preocupado com a democracia na América Central invista-se no papel de advogado global do polêmico presidente iraniano, a ponto de criticar em público uma carta reservada enviada pelo presidente Barack Obama, como fez o assessor Garcia. Ou lançar reproches agressivos ao governos dos EUA, como fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao acusar os EUA de não ter moral para criticar os iranianos.
O que desmoraliza o governo brasileiro e enseja comparações desfavoráveis com o caso hondurenho é o contraste das autoridades na forma como atuam contra as ameaças à democracia na área de influência do Brasil. A aventura golpista em Tegucigalpa é lastimável, mas é nociva a visão messiânica, conflituosa e anacronicamente estatista do governo da Venezuela que, no entanto, recebe regularmente palavras de encorajamento público saídas do Palácio do Planalto.
Em Honduras, a história fez uma farsesca reaparição, reacendendo temores em uma região ainda afetada pela herança de décadas de corruptos e fracassados regimes militares. Cabia, como coube, a todos os países latino-americanos, uma condenação veemente aos golpistas e pressões para a normalização democrática. O governo brasileiro foi muito além: misturou-se a um político que superestimou sua base popular, como Manuel Zelaya, enredou-se na histriônica política local e mostra agora não saber como se desligar dessa deplorável ópera-bufa encenada, entre outras locações, na embaixada brasileira em Tegucigalpa.