Título: Coca amplia renda e dá voto na Bolívia
Autor: Moura , Marcos
Fonte: Valor Econômico, 03/12/2009, Especial, p. A18

Simón Rey é um pequeno produtor rural boliviano que durante anos plantou café em seu sítio no município de Coroico, a duas horas de La Paz. Aos 65 anos, ele conta como finalmente está conseguindo incrementar sua renda e como conseguiu até juntar dinheiro para renovar a casa onde mora. Há dois anos, Rey decidiu seguir o caminho dos vizinhos. "Eu levava 200 libras de café para vender e os outros levavam 50 libras de coca. Eles ganhavam 1.000 bolivianos, e eu, 600 bolivianos", diz. "Depois que fui para a coca, comprei móveis, coisas para casa."

Coroico fica nos Yungas, a região mais tradicional de plantio de coca da Bolívia. É uma área montanhosa - em muitos lugares com picos altíssimos e vales profundos - de terra seca e clara. Na zona rural do município ainda existem sítios com plantações de café, banana, laranja, hortaliças e palmito. Muitas dessas culturas foram incentivadas nos anos 80 e 90 na Bolívia pelo governo americano e também pelo governo brasileiro, por meio da Embrapa, como alternativas ao cultivo da coca. A coca, no entanto, parece imbatível.

"Aqui a terra não favorece outras plantas", diz Rey, repetindo o que disseram todos os cocaleiros com quem o Valor conversou na semana passada, durante uma visita a Yungas. Mas não é só a terra. Há o fator preço, que no mercado legal de coca da Bolívia têm subido e estimulado agricultores a abandonar outras culturas. E há, acima de tudo, Evo Morales. Sob seu governo, os cocaleiros bolivianos passaram a trabalhar com mais tranquilidade, sem as perseguições, as acusações de serem narcotraficantes, as destruições forçadas de roças, as detenções e sem medidas abusivas que por anos foram rotina nas regiões cocaleiras do país.

"As coisas melhoraram um pouco. Trabalhamos mais livres agora, antes nos perseguiam, ameaçavam, prendiam", diz Reinaldo Poma, de 28 anos, que atendeu à reportagem enquanto colhia coca ao lado de um grupo de mulheres na localidade de Trinidad Pampa.

Simón Rey já havia dito algo semelhante minutos antes. A alguns passos do largo onde está a igreja matriz de Coroico, ele aponta o complexo de prédios acinzentados da Umopar (Unidad Móvil de Patrullaje Rural), que antes de Morales fazia operações contra os cultivos com o apoio dos EUA. "Agora não, agora não tem nada disso", diz ele sorrindo.

Os cocaleiros que falaram com a reportagem na quarta-feira passada disseram não ter dúvida sobre em quem votarão na eleição de domingo. "Eu diria que 99% daqui da região vai votar no Evo", diz Victor Mercado, 51 anos, ex-vereador do município de Coripata e que há 30 anos vive do cultivo da folha.

A vida mais tranquila dos cocaleiros - algo que ajuda decisivamente a candidatura do presidente ex-cocaleiro - é fonte constante de preocupação do governo brasileiro. Segundo a Polícia Federal, a maior parte da droga produzida na Bolívia segue para o Brasil. O que atravessa a fronteira não é tanto o cloridrato de cocaína (a forma inalável da cocaína), mas a pasta base, com a qual se faz o crack, o mais devastador subproduto das folhas que Rey, Poma e Mercado cultivam nas encostas dos Yungas.

Na polícia brasileira há uma convicção: a política menos repressiva de Morales para a coca está estimulando a alta do plantio no país e, consequentemente, a aumentar a oferta de droga no Brasil.

Desde que foi eleito, Morales tem se empenhado em uma campanha nacional e internacional de que a coca não é cocaína. Mascou folhas de coca na Assembleia Geral da ONU e num encontro em Genebra este ano. Morales defende que a coca seja retirada da lista de estupefacientes e que produtos feitos com a folha possam ser comercializados livremente pelo mundo.

Coerente com seu mantra de que coca não é droga - frase que hoje estampa camisetas vendidas nas lojinhas da cidade - Morales reverteu a prática dos governos anteriores de criminalizar os cocaleiros e de usar a polícia contra eles. No seu primeiro ano de mandato, em 2006, oficializou o chamado controle social dos cultivos de coca. Pelo sistema, as próprias comunidades de agricultores se comprometem a limitar as áreas plantadas ao que uma lei dos anos 70 determina ser o suficiente para abastecer a demanda tradicional e legal da folha de coca no país. Pela lei, a área legal é de 12 mil hectares só nos Yungas.

Em meados da década, o então presidente Carlos Mesa permitiu que mais 3 mil hectares fossem consideradas zona legal em outra região da Bolívia, o Chapare. Em seu último relatório, com dados de 2008, a ONU diz que a área plantada já supera 30,5 mil hectares. Em 2005, ano anterior ao do mandato de Morales, a área era de 25 mil hectares.

Segundo a PF, porém, policiais bolivianos falam em mais de 40 mil hectares. No governo Morales, a ideia é ampliar a área legal para 20 mil hectares, sob o argumento de que o consumo legal aumentou da década de 70 até hoje.

Em 2008, Morales expulsou da Bolívia a DEA (Drug Enforcement Administration, órgão do Departamento da Justiça dos EUA que atua no combate ao narcotráfico) pouco depois da expulsão do embaixador americano. A acusação nos dois casos: ingerência em assuntos interno. Dos três países produtores de folha de coca (Colômbia, Peru, os dois maiores produtores, e Bolívia), foi o último que registrou o maior avanço do cultivo em 2008: 6%, diz a ONU.

A coca é usada maciçamente na Bolívia por camponeses e mineiros - e também por uma parcela de trabalhadores em zonas urbanas - que mascam a folha para, segundo dizem, ter mais energia para o trabalho. É usada também, especialmente no campo, para atenuar dores (dores de dente, por exemplo), ou para uso em rituais tradicionais, como ler o futuro por meio das folhas. São hábitos que remontam ao período pré-colonial. A nova Constituição coloca a coca como recurso natural a ser protegido pelo Estado. A folha é também matéria-prima de chás - o chá de coca e o trimate, uma mescla mais saborosa de coca, camomila e anis.

Analistas bolivianos e autoridades do governo brasileiro duvidam, entretanto, que essa demanda local absorva a maior parte do que se planta. Dizem que é o contrário: que a maior parte vira droga.

Os cocaleiros dos Yungas vendem suas safras - três por ano - no único entreposto legalizado de coca de La Paz. É um prédio com muitos corredores, quartos e saguões no bairro de Villa Fátima, onde os produtores chegam de madrugada e, a partir das 5h30, começam a descarregar nas costas sacos e sacos de 50 kg de coca. Há outro mercado em Cochabamba. Ali vendem para negociantes que levam a droga para o interior.

Pelas regras combinadas pelos cocaleiros e respeitadas pelas autoridades, os carregamentos de folha de coca só podem deixar o campo depois que os comitês comunais - constituídos por cocaleiros - expedem uma autorização atestando a quantidade transportada. Na estrada até a capital boliviana, há um posto da polícia onde o papel é (ou deveria ser) conferido. No mercado, só a coca com essa autorização pode ser comercializada. Isso tudo, claro, é o ideal. Até autoridades do governo admitem que o controle social em alguma áreas é pura ficção (leia entrevista abaixo).

"Alguns daqui podem vender também para os que tem negócios de laboratórios [de refino de droga], mas a maioria, não. A maioria só vende em La Paz ou para outros compradores que vão vender em La Paz. Daí para frente não sabemos", diz Simón Rey.

Nos Yungas, as famílias cocaleiras da zona legal dizem que as plantações para a indústria da droga estão em crescente expansão nas chamadas zonas ilícitas - fora de uma área mais ou menos delimitada para o cultivo legal - e onde não há controle social efetivo.

"Queremos que o governo erradique essas zonas ilícitas. Não são áreas permitidas, não são controladas, são para o narcotráfico", Victor Mercado, que planta coca na comunidade dos Anguias, do município de Coripata. "Aqui, nas áreas legais, é difícil que haja um contato dos produtores com os narcotraficantes. O controle social serve para isso." Mercado integra o comitê de sua comunidade e diz que caso haja suspeita de envolvimento de vizinhos com a indústria da droga eles são repreendidos. Se há provas, são expulsos.

Na região dos Anguias, diferentemente de Coroico, onde vive Simón Rey, não há praticamente nenhuma outra plantação visível da estrada de terra que corta as montanhas. É monocultura de coca. O relato corrente é que mesmo sendo zona legal, a região foi assombrada durante anos por ações policiais. "Antes de Evo, os governos queriam erradicar, controlar até aqui na área legal e os trabalhadores tinham sempre de estar mobilizados. A polícia vinha armada, jogava gás. Nesse governo não há mais mobilização. Não há mais repressão com Evo", diz Mercado.

"Não dá para negar que o aumento do plantio na Bolívia tem um reflexo no Brasil. Não vamos criticar o presidente Morales, mas percebemos que eles têm dificuldades de controlar o que vai para o mercado lícito e o que vai para o tráfico", diz o delegado Luiz Cravo Dorea, coordenador geral de repressão a entorpecentes da PF. Dorea diz que, segundo dados da ONU, 80 toneladas de cocaína - cloridrato ou pasta base - chegam ao Brasil por ano; 40 toneladas vão para o exterior. No ano passado, a polícia apreendeu 20 toneladas. "Acredito que mais da metade disso veio da Bolívia".

O adido da PF em La Paz, o delegado Clóvis Monteiro, vai um pouco além: "Não resta dúvida que o fato de que o presidente Morales é um ex-cocaleiro teve um impacto da expansão dos plantios. Isso não quer dizer, no entanto, que o governo seja conivente com a expansão do tráfico, vistos que têm adotado políticas de combate."

A polícia boliviana tem mesmo desbaratado laboratórios de refino de coca ou pequenas fábricas improvisadas - algumas nos casebres de El Alto, a cidade de casas sem reboco que fica no altiplano acima de La Paz. A novidade não são as fabriquetas, mas os laboratórios. "Há 20 anos, havia uma divisão de trabalho na indústria da droga: a Bolívia tinha plantações de coca, mas quem fazia a cocaína era a Colômbia. Isso está mudando", diz Roberto Laserna, cientista social e presidente da Fundação Milenio, de La Paz.

Uma autoridade do governo brasileiro que acompanha as relações Brasil-Bolívia diz que o mercado de drogas na Bolívia tem tido um avanço tão expressivo que no auge da crise financeira não teriam sido medidas contra a crise que mantiveram a economia boliviana relativamente ilesa. "O dinheiro do narcotráfico que irrigou o mercado informal foi o que ajudou a segurar o país."