Título: Consumo dos pobres: motor da retomada econômica ::
Autor: Graziano da Silva , José
Fonte: Valor Econômico, 16/11/2009, Opinião, p. A12
O Brasil emerge da crise econômica mundial como uma nova referência de sustentação do crescimento em meio às instabilidades geradas pelo colapso dos mercados financeiros desregulados. Não são apenas os radares dos investidores internacionais que vasculham o mercado local. Formuladores de políticas sociais e organizações internacionais ligadas à luta contra a fome e a pobreza também demonstram crescente interesse pela singularidade brasileira.
A principal diferença entre a rápida retomada do crescimento no país e as medidas emergenciais de alcance restrito acionadas em outras nações está na natureza estrutural assumida pelas políticas sociais em nossa economia. O alicerce da demanda interna, um contrapeso que se revelou decisivo na recessão internacional, é o ponto-chave. Os resultados mostram a vantagem indiscutível da estratégia brasileira em relação a políticas compensatórias que agora vivem o dilema do seu desmonte.
No caso brasileiro, ao contrário, sucessivas decisões de governo carimbadas por alguns como "assistencialistas" foram corajosamente alçadas à condição de políticas de Estado nos últimos sete anos. Nascia assim, silenciosamente, uma engrenagem de fomento à demanda popular que se antecipou ao "mundo keynesiano" legitimado pela explosão da bolha imobiliária nos EUA.
Quando adveio o colapso da agenda neoliberal, o Brasil já colhia os frutos desse pioneirismo gradualmente implantado. Isso foi possível porque o país não desmontou o aparato público depois da crise dos anos 80. Por exemplo, mantivemos o Banco do Brasil (BB), que é a principal fonte de crédito rural, e a Embrapa, que é uma instituição de ponta no desenvolvimento de tecnologias de produção agrícola adaptadas ao país. Na área de proteção social, não extinguimos a aposentadoria rural ou a rede de saúde pública e gratuita, como fizeram outros países.
Vale recordar que, em 2006, o Brasil cumpria, com nove anos de antecedência, a primeira Meta do Milênio de reduzir em 50% a parcela da população com ganho inferior a U$ 1/dia. Em 2007, pesquisa do Ministério da Saúde constatava a queda de 46% na desnutrição infantil, redução que chegou a 74% no Nordeste. Em 2008, surgiam as primeiras quantificações do total de brasileiros que deixariam a linha da pobreza desde o primeiro governo Lula. Segundo a FGV, nesse período, 19,4 milhões de pessoas migraram da pobreza para o extratos de renda média.
A FGV constatou ainda que, desde 2003, a renda per capita avança a uma taxa média de 5,3%, progressão que extrai 21% do seu fôlego das políticas de transferência de renda que definiram assim um patamar mínimo da demanda doméstica.
Na contramão do resto do mundo, a demanda das famílias brasileiras cresce há 23 trimestres seguidos. Contribui para isso a recuperação do poder de compra do salário mínimo brasileiro, com aumento real de 46% desde 2003. Segundo a OIT, o piso salarial brasileiro teve o sétimo maior ganho mundial no auge da crise, em 2008; hoje, de acordo com o Dieese, a aquisição de uma cesta básica equivale a 45% do seu poder de compra, contra 89% em 1995.
A profundidade dessas transformações foi decifrada pelo IPEA ao constatar que, entre 2005 e 2008, a morfologia da distribuição da renda brasileira trocou a perversa forma piramidal pela de um barril: a cintura do barril passou a reunir 37,4% da população (contra 21,8% em 1995), enquanto o contingente da alça de ferro, que forma a base mais pobre, recuou de 34% para 26%. Desde 2003, a renda dos 10% mais pobres cresceu sete vezes mais rápido que a dos 10% mais ricos.
Dinâmicas de crescimento lubrificadas pelo consumo popular padecem de um conhecido menosprezo ortodoxo baseado na suposta incapacidade dessa engrenagem de acionar efeitos multiplicadores no investimento. Os indicadores industriais de setembro do IBGE têm algo a dizer sobre esse mito. A produção industrial cresceu pelo nono mês consecutivo, mas desta vez o segmento de maior expansão foi o de bens de capital, um sinal não desprezível de que o ambiente dos negócios foi positivamente contagiado.
Não há improviso por trás da resistência da demanda que sustentou a economia brasileira na crise e agora pavimenta seu caminho de volta ao investimento. Em janeiro de 2003, quando o presidente Lula decidiu criar um amplo leque de políticas sociais para combater a fome, o país de alguma forma lançava as fundações da trajetória que agora se mostra vitoriosa.
Acabar com a fome, incorporar amplas parcelas de populações humildes ao mercado de massa era uma decisão política que impunha a superação de preconceitos macroeconômicos e de centenárias omissões institucionais. O Fome Zero foi a marca registrada desse esforço de segurança alimentar e nutricional que ao mesmo tempo funcionou como polo germinador de uma nova dinâmica inclusiva de crescimento.
Essa arquitetura resistiu bem à mais grave crise mundial desde os anos 30. O país redescobriu a importância de seu mercado interno; a indústria incorporou novas fronteiras regionais ao seu cadastro de clientes; e circuitos de consumo, renda e emprego foram multiplicados no interior do país sob o impulso da agricultura familiar, cujo fortalecimento não decepcionou.
Os R$ 15 bilhões de crédito disponibilizados no Plano Safra de 2009/2010 são seis vezes maior que o volume disponível em 2002/2003. Uma lei sancionada este ano obriga a aquisição de pelo menos 30% da merenda escolar junto à pequena produção local. São 35 milhões de alunos da rede pública, não se trata, portanto, de uma demanda tangencial.
O Programa de Aquisição de Alimentos é outro mercado importante para o pequeno produtor e atende cerca de 10 milhões de pessoas com ajuda alimentar. Quem rastrear os efeitos multiplicadores dessa engrenagem constatará que 61% das vendas de tratores no país foram destinadas a esses pequenos agricultores, no primeiro semestre deste ano.
Os êxitos atuais reforçam a certeza de que vencer a fome é uma meta possível. Mais que isso, pode ser uma alavanca valiosa para que outros países, a exemplo do Brasil, respondam à crise mundial com uma nova lógica de desenvolvimento. Esse é um exemplo e uma lembrança importante quando se inaugura a Cúpula Mundial sobre a Segurança Alimentar, em Roma, Itália.