Título: Bolsa Família atinge 14 milhões nas capitais
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/12/2009, Especial, p. A20
Rita de Cássia da Silva Rosa Gonçalves tem o coração grande como seu nome, em mais de um sentido. Um deles é o motivo pelo qual ela tornou-se elegível para receber R$ 62 mensais de benefício do programa Bolsa Família . Rita tem hipertrofia cardíaca, popularmente conhecida como coração grande, o que a impede de trabalhar regularmente, embora só tenha 52 anos. "Faço faxina leve", conta com seu jeito bonachão e envolvente, conformada com a doença, mas não com a miséria, o que a torna uma espécie de líder informal do Bairro da Paz, eufemismo para denominar o morro sem calçamento, sem esgoto, sem água e luz regulares onde vive precariamente com a família no município de Queimados, um dos mais pobres da Baixada Fluminense.
Ela representa uma das 3.267.886 de famílias das capitais brasileiras, periferias e regiões metropolitanas que receberam o Bolsa Família em novembro deste ano, número equivalente a 26,3% do total de beneficiários do programa que hoje atende a 12,4 milhões de famílias. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE referente a 2008, nas famílias mais pobres, que ganham até um quarto de salário per capita (R$ 116,25) por mês, a média de moradores por domicílio é de 4,8 na região Norte, 4,3 no Nordeste e 4,2 no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Isto significa que havia, em novembro, 14,06 milhões de pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família nas capitais e periferias, 18,7% dos seus 75,1 milhões de moradores.
Rita tem duas filhas, casadas e beneficiárias do programa, e um filho de 22 anos, que vive com ela e o pai, Luís Gonçalves, 71, aposentado por invalidez desde 1979. A casa não tem mais de 30 metros quadrados, divididos em um quartinho, saleta, cozinha e banheiro (com fossa) microscópicos. As janelas são cortinas de plástico. A sala e o quarto têm piso de cimento, o restante é de terra batida. Em volta, árvores frutíferas suavizam o panorama de carência extrema.
Jardel Gonçalves, o filho, tem o ensino médio completo e curso de técnico em computação, mas ganha R$ 600 por mês como operário em uma fábrica de reciclagem de papel, pedalando diariamente 22 quilômetros para ir ao trabalho e voltar. Das irmãs, a mais nova, Jalda, 25, é professora formada (curso normal), mas não tem emprego. Mora "de favor" na casa da sogra, no bairro de Comendador Soares, periferia de Nova Iguaçu, com o marido, que faz biscates, e a filha Camile, de um ano. Recebe R$ 68 de benefício
A outra, Taís Rabelo, 27, desempregada como o marido, mora perto da mãe, tem um filho de sete anos, recebe R$ 90 por mês do Bolsa Família e estuda literatura em uma faculdade privada no bairro de Campo Grande (zona oeste), financiada pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). O transporte para a faculdade é o principal destino do dinheiro do programa. Articulada, Taís ironiza: "Isso aqui é um recanto para quem não tem casa". E, séria, sobre o Bolsa: Não é uma esmola, mas também não garante dignidade. Emprego é que garante. E a irmã Jalda: "Ninguém quer Bolsa Família não, a gente quer emprego, mas se estão dando o Bolsa Família, a gente pega, que a gente não é maluca".
A casa da família de Rita de Cássia é precária, mas não faltam os principais eletrodomésticos e eletrônicos existentes em qualquer casa de classe média. Geladeira, TV, telefone celular, forno de microondas... Tudo distribuído, num arranjo improvável, em um espaço onde falta lugar até para dormir.
"A pobreza urbana é diferente da rural. Não há fome nas grandes cidades brasileiras, exceto, talvez, no Nordeste. As necessidades são outras, habitação, saúde, educação, saneamento.", diz Sergei Soares, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para ele, o fato de contarem com alguns confortos modernos não significa que os pobres das regiões urbanas não precisem do Bolsa Família, embora o programa não tenha sido desenhado para resolver seus problemas.
Soares considera que a distribuição do benefício nas capitais e periferias está abaixo das necessidades das populações, fato confirmado pela base de dados do próprio Ministério do Desenvolvimento Social , responsável pela gestão do programa. A cidade de São Paulo é o exemplo mais gritante. Segundo estimativas do ministério, baseadas nas projeções do IBGE, a capital paulista possui 327.188 famílias pobres, dentro do perfil Bolsa Família, mas em novembro apenas 155.183 estavam aptas a receber o benefício.
O problema, segundo o ministério, é de gestão, a cargo da prefeitura. Por não conseguir alcançar o mínimo de 0,60 do Índice de Gestão Descentralizada (IGD), criado para medir o gerenciamento do cadastro do Bolsa Família pelas prefeituras, São Paulo deixa de receber mensalmente R$ 713,15 mil a que teria direito. O IGD de São Paulo é de 0,48.
Vladimir Cesar Valentim, coordenador de gestão de benefícios da Secretaria de Assistência Social da prefeitura de São Paulo, a cidade deixava de atender 50 mil famílias, número menor que o indicado pelo ministério. Segundo ele, havia 250 mil famílias com o perfil de beneficiárias, mas apenas 200 mil eram atendidas. Após recadastramento, o número de atendidos caiu para 155.183. Além disso, partir de maio, o governo federal ampliou o alcance do programa e a cidade ganhou 120 mil novas vagas, chegando ao número indicado pelo ministério.
Os números existentes no site do ministério às vezes enganam. Brasília, que tem 108.119 famílias pobres e em condições de receber o Bolsa, teve apenas 30.358 famílias beneficiadas em novembro, mas não se trata de outro caso de má gestão de cadastro. Há um "acordo de pactuação" entre o ministério e o Distrito Federal, pelo qual uma parte das famílias é atendida pelo próprio governo distrital. Brasília tem a menor parcela relativa da população atendida pelo programa, apenas 4,89%.
De modo geral, as estimativas de pobreza e o número de beneficiários ficam próximos, e em alguns casos, como o de Recife (116.377 famílias pobres e 125.830 recebendo o Bolsa), há até mais gente recebendo o benefício do que o total estimado.
Para Soares, os dados para a medição da pobreza são os melhores possíveis, dadas as imprecisões de estimativas baseadas em um recenseamento realizado há quase dez anos (2000). O problema maior, segundo ele, é conceitual e independe de gestão: "Por não ser um direito assegurado por lei, tem gente que fica de fora."