Título: Brasil assume curso independente
Autor: Purcell , Susan K.
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2010, Opinião, p. A9

O Brasil quer evitar que os EUA expandam seu envolvimento militar na América do Sul, que considera sua esfera de influência

Até recentemente o governo de Obama assumiu que o Brasil e os EUA eram aliados naturais, que compartilhavam muitos interesses de política externa, particularmente na América Latina. O Brasil, afinal, é uma democracia amistosa e tem uma economia de mercado crescente e valores culturais ocidentais.

Em breve, o país será a quinta maior economia do mundo. O Brasil descobriu recentemente bilhões de barris de petróleo em águas profundas ao largo de sua costa e é uma potência agrícola. O país também tem feito progressos significativos na erradicação da pobreza. Parecia, portanto, natural esperar que o Brasil se tornasse "mais como nós", que procuraria desempenhar um papel mais ativo e construtivo nesse hemisfério, e que os interesses políticos e de segurança americanos e brasileiros em grande parte coincidiriam.

Isso agora parece sonho. Numa série de importantes questões políticas e de segurança, Washington e Brasília, recentemente, não coincidiram. Nem o Brasil tem mostrado uma grande liderança na resolução dos problemas de política e de segurança que a região enfrenta.

Um exemplo é o papel do Brasil na União das Nações Sul-Americanas (Unasul). Na reunião de setembro, em Quito, focada em questões de segurança regional, entre os temas não discutidos estão a corrida armamentista, envolvendo vários bilhões de dólares na região; a concessão de asilo e outras formas de ajuda da Venezuela às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), um grupo colombiano narcoguerrilheiro, e a crescente cooperação nuclear entre o Irã e a Venezuela. Em vez disso, o Brasil aderiu ao Unasul em críticas à Colômbia por ter concordado em permitir que os EUA usem sete das suas bases militares em atividades contraterroristas e contraentorpecentes na Colômbia.

O fato de a Colômbia estar sob ataque de um grupo guerrilheiro armado apoiado por alguns membros da União não foram considerados relevantes para a decisão da organização de criticar a Colômbia por pedir ajuda de Washington. Além disso, nenhum dos países democráticos na América do Sul, inclusive o Brasil, ofereceu apoio militar ou mesmo retórico à atacada Colômbia.

Outro exemplo é a cambiante posição brasileira quanto à importância de governança democrática. Tanto o Brasil como os EUA opuseram-se, inicialmente, à derrubada, por militares hondurenhos, do presidente democraticamente eleito, Manuel Zelaya, apesar de Zelaya ter desrespeitado a Constituição hondurenha. O interesse do Brasil em democracia em Honduras, não se estende, porém, a Cuba.

Apenas semanas antes, o Brasil votou, na Organização dos Estados Americanos (OEA), por levantar a proibição à adesão de Cuba - um país que não realizou nenhuma eleição democrática em 50 anos. Essa decisão contradiz a Carta democrática da OEA.

O Brasil também nunca tentou mobilizar apoio contra o uso, pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, de instituições democráticas para destruir sistematicamente a democracia nesse país. Ao contrário, o presidente brasileiro, Luís Inácio Lula da Silva está apoiando os esforços da Venezuela para participar do Mercosul (uma união aduaneira sul-americana), apesar das regras que limitam a adesão a países democráticos.

Finalmente, há a questão da patente falta de preocupação do Brasil diante da crescente penetração do Irã na América Latina utilizando-se da Venezuela. Há atualmente voos semanais entre Caracas e Teerã que trazem passageiros e carga à Venezuela, sem qualquer controle aduaneiro ou de imigração. A Venezuela também assinou acordos com o Irã para a transferência de tecnologia nuclear, e especula-se sobre estar dando ao Irã acesso aos depósitos de urânio venezuelanos.

Em vez de manifestar preocupação com as atividades do Irã na América Latina, o Brasil está se aproximando de Teerã e espera expandir seu comércio bilateral de US$ 2 bilhões para US$ 10 bilhões em futuro próximo. O presidente Lula recebeu recentemente o presidente Mahmoud Ahmadinejad no Brasil. Lula reiterou seu apoio ao direito do Irã de desenvolver tecnologia nuclear para fins pacíficos, ao mesmo tempo insistindo em que não existem provas de que o Irã esteja desenvolvendo armas nucleares.

Várias conclusões podem ser extraídas do comportamento brasileiro. Primeiro, o Brasil quer evitar que os EUA expandam seu envolvimento militar na América do Sul, que considera sua esfera de influência. Em segundo lugar, o Brasil prefere trabalhar dentro das instituições multilaterais, em vez de agir unilateralmente.

Nessas instituições, o Brasil pretende integrar todos os atores regionais, obter consenso e evitar conflito e fragmentação - objetivos meritórios, todos. Mas são objetivos processuais, e não substantivos.

Dito de outra forma, os esforços multilaterais do Brasil na região parecem dar maior valor à aparência de liderança do que a encontrar soluções reais para as crescentes ameaças políticas e de segurança enfrentadas pela América Latina. Ao mesmo tempo, o Brasil parece cada vez mais interessado em atuar no cenário mundial, conforme ilustrado pela recente oferta do presidente Lula de intermediar um fim para o conflito israelense-palestiniano.

Essas conclusões não significam que os EUA e o Brasil não tenham interesses que se sobrepõem, ou que não possam trabalhar juntos para resolver determinadas questões regionais ou mesmo mundiais. De fato, significam que Washington poderá ter de repensar suas premissas sobre em que medida pode-se contar com o Brasil para lidar com problemas políticos e de segurança na América Latina de um modo que seja também compatível com os interesses americanos.

Susan Kaufman Purcell é diretora do Centro de Política Hemisférica da Universidade de Miami.