Título: CVM quer novas regras para aquisições
Autor: Valenti , Graziella
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2010, EU & Investimento, p. D1

Por e Silvia Fregoni, de São Paulo 05/01/2010

Com a sofisticação e a expansão do mercado de capitais brasileiro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem cada vez mais desafios. No ano passado, a autarquia se voltou ao cumprimento de uma agenda de transparência. Para 2010, o desafio é preparar o mercado para um ambiente em que aquisições de controle na própria bolsa se tornam mais frequentes, como foi a da operadora brasileira GVT pelo grupo francês Vivendi. Nesse cenário, a CVM também está estimulando a autorregulação, como a criação de um comitê para analisar fusões e aquisições.

Em entrevista ao Valor, a presidente da CVM, Maria Helena Santana, falou sobre a evolução do ambiente, em que "há cada vez mais empresas com volume de ações votantes bem relevante no mercado e cada vez mais empresas com o próprio controle potencialmente no mercado". Foi para lidar com esse cenário novo que a autarquia editou regras sobre as informações prestadas pelas empresas abertas e também para regular o sistema de voto por procurações nas assembleias de acionistas. A próxima fronteira será regular as aquisições de controle de empresas cujo capital está disperso no mercado.

A expectativa de Maria Helena é que propostas para atualização da Instrução 361, que trata de ofertas públicas, sejam levadas à audiência pública ainda no primeiro trimestre de 2010. O ano passado terminou com 104 companhias no Novo Mercado, de um total de 430 empresas listadas na bolsa. O nível máximo de governança corporativa já representa 23% da capitalização da Bovespa, de R$ 2,3 trilhões, e 35% do volume transacionado diariamente na praça paulista.

Enquanto os números de mercado crescem exponencialmente, a CVM se prepara para fazer - talvez só em 2011 - seu primeiro aumento no quadro de vagas desde 2005, quando colocou debaixo de seu guarda-chuva os fundos de investimento e os derivativos da BM&FBovespa. Veja a seguir os principais trechos da entrevista concedida por Maria Helena ao Valor:

Valor: O que foi importante em 2009?

Maria Helena Santana: Para falar das coisas muito importantes, tem que falar da edição da 480, que modifica toda a divulgação de informações de companhias abertas, e da instrução de assembleias [481]. São duas normas que se combinam e trazem uma mudança muito grande na condição dos investidores de acompanhar empresas abertas, de cobrar explicações e desempenho. Acho que realmente trocamos de patamar e não vai ser fácil. As empresas podem estar se sentindo, neste momento, diante de uma tarefa um pouco mais árdua do que estavam habituadas. Mas, se isso consola, também para CVM não será fácil.

Valor: A expectativa geral é que 2010 tenha um movimento mais forte de ofertas iniciais de ações que em 2009. O ambiente de mercado, de transparência, está diferente?

Maria Helena: Acho que sim, que vai melhorar em alguns aspectos, embora a diferença do total de informações que era fornecida pelo emissor no prospecto e as que são exigidas agora no Formulário de Referência não seja tão relevante quanto na vida cotidiana. Mas a informação vai vir organizada de uma forma que será sempre a mesma. O fato de ter tabelas e informações estruturadas também facilita. Espero que a linguagem seja mais direta, mais clara, menos preocupada apenas com os aspectos legais, jurídicos e de cumprimento da regra. Mas o que faz o investidor se tornar mais cauteloso, mais cuidadoso e olhar melhor as informações do emissor é a experiência. A gente tem muito poucos anos de experiência, depois da retomada do mercado em 2004. Antes disso, eram muito poucas pessoas que já tinham comprado ações em aberturas de capital. O mercado era muito menor. É um aprendizado para os próprios investidores.

Valor: De fato, o volume de informações que o mercado terá a partir deste ano será muito maior. Como a CVM lidará com esse volume extra?

Maria Helena: Em princípio, olharemos tudo. O formulário [Formulário de Referência, documento detalhado que substitui o antigo IAN] tem conteúdo mínimo, que é obrigatório. Temos ferramentas eletrônicas e procuramos automatizar ao máximo os processos. Além disso, recebemos alguns analistas neste ano, reforçando o time. Também conseguimos aprovação do Senado para aumentar o número de vagas da CVM. Agora só depende de sanção do presidente da República. Serão mais 110 analistas e 50 agentes executivos - que dão apoio aos analistas. É quase um terço em relação a base atual, que é de quase 500. Mesmo após a sanção, ainda dependeremos da aprovação do Ministério da Fazenda e da previsão orçamentária. Não pretendemos fazer concurso para todas as vagas de uma vez, porque também não teríamos como absorver essas pessoas e treiná-las de uma só vez.

Valor: Alguma expectativa sobre quando seria o primeiro concurso?

Maria Helena: Estamos só aguardando a sanção para entrar com os pedidos. Não sei se vai ser possível todo o procedimento antes das eleições, porque tem um bloqueio. É um pouco imponderável. Pode ser que fique para o ano que vem, mas no máximo no começo de 2011 faremos os reforços.

Valor: E as vagas são para acompanhar o crescimento do mercado?

Maria Helena: Na verdade, essa proposta de projeto de lei saiu da CVM em 2007. Então, é claro que foi diante de um quadro de expansão do mercado. A última vez que a CVM pode contratar foi em 2005 e foi a partir de ter recebido todos os fundos de investimentos e os mercados de derivativos da BM&F. De lá para cá, o mercado mudou de tamanho como nós todos sabemos.

Valor: Qual tem sido o orçamento da CVM?

Maria Helena: Foram R$ 170 milhões em 2008 e R$ 227 milhões para 2009. Mas temos arrecadado mais do que gasto. [Em 2008, a arrecadação foi de R$ 185 milhões e no ano passado, só até 10 de setembro, somava R$ 184 milhões]. A imensa maioria do orçamento, talvez cerca de 80%, é comprometida com o pagamento dos funcionários e da aposentadoria. Sobre essa parcela enorme nós não temos nenhum controle. Sobra um pedacinho desses recursos, no qual temos procurado incluir projetos que são importantes para estruturar a CVM, automatizar mais tarefas, com o desenvolvimento de sistemas e equipamentos. Temos conseguido fazer isso, mas ainda não no nível que precisamos. Não vamos acompanhar crescimento de mercado só com expansão de quadro [de funcionários]. Temos de mudar a forma de trabalhar e para isso precisamos desses recursos investidos em projetos de sistemas que nos apoiem. Acho que a rigidez do organismo público coloca um desafio a mais, na medida me que há um mercado funcionando, ativo, ultra inovador nas suas práticas e um mercado que paga bem, que consegue contratar os melhores advogados e estruturadores de operações.

Valor: Você tocou num ponto interessante que é a criatividade do mercado. A cada momento teremos situações novas para o Brasil, no que diz respeito a operações de mercado. Como a CVM pretende lidar com esse cenário?

Maria Helena: Nós vivemos situações neste ano que valem a pena comentar. Uma delas foram as empresas que perderam muito por terem atuação especulativa em derivativos cambiais. Outra novidade foi a questão da listagem de empresas por meio de BDRs [recibos de ações estrangeiras, negociadas aqui] no mercado brasileiro. Vieram, então, as pseudo-estrangeiras [empresas brasileiras com sede em paraísos fiscais] usando essa regra, até então só usada por companhias efetivamente internacionais. Tivemos que por meio de norma, com a edição da 480, redirecionar essa prática e garantir que não seja usada para que empresas brasileiras se listem como emissoras estrangeiras. Neste ano, fomos apresentados a primeira tomada ou tentativa de tomada de controle de uma empresa aberta brasileira. Já houve casos no passado, mas não com essa dinâmica. Diante desse episódio, que estamos analisando de vários pontos de vista, avaliamos inclusive medidas normativas, que podem ser levadas à discussão neste trimestre.

Valor: Mas isso seria por meio de uma revisão da Instrução 361 (que regula ofertas públicas, em suas mais diversas modalidades)?

Maria Helena: A Instrução 361 vai permanecer porque é muito boa. Há algumas mudanças para serem feitas, mas não se trata de revogar a regra. São ajustes mesmo. Uma parte deles tem a ver com a existência de uma oferta pública concorrente. Que tipo de conduta deve ser admitida pelos concorrentes no momento em que haja uma oferta lançada. Vamos olhar a experiência internacional, que é muito mais rica do que a nossa. Estamos lidando com vários temas que são desse momento novo para o qual estamos evoluindo, que é o de ter cada vez mais empresas com volume de ações votantes bem relevante no mercado e cada vez mais empresas com o próprio controle potencialmente no mercado.

Valor: E as pílulas de veneno?

Maria Helena: Essa, eu acho, é uma questão que vai depender muito mais de uma atuação do mercado que do regulador. Esse tipo de cláusula introduziu um ruído grande no mercado, principalmente, por não haver padronização e por existirem redações que dão muita margem a interpretações. Já fomos apresentados a vários desses problemas em que os participantes ficaram imobilizados porque tiveram receio dos riscos legais que a atuação deles poderia causar. O pior dos mundos, portanto. Elas atrapalham negócios legítimos, que poderiam até beneficiar os próprios acionistas.

Valor: Mas esse assunto, então, não depende de regulação, é isso?

Maria Helena: Eu acho que não. Acho que o ideal seria que o próprio Novo Mercado fosse nessa direção. Tomara que haja consenso neste sentido. Que haja uma regra estabelecendo uma oferta obrigatória por aquisição de participação relevante - nos 30%, nos 25, seja como for - com as suas correspondentes regras de procedimentos. E igual para todo mundo. Do ponto de vista da proteção ao acionista, substitui muito bem a pílula de veneno e é importante neste momento em que teremos a maioria do capital votante em circulação e que é importante proteger o acionista nesse cenário que a nossa lei não trata. E com muitas vantagens. Se o Novo Mercado for nessa direção, as empresas e os acionistas poderão se sentir confortáveis para tirar essas cláusulas despadronizadas e restritivas dos estatutos.

Valor: Em relação ao Novo Mercado, o que mais, do ponto de vista do regulador, tem para avançar?

Maria Helena: Não sei se o regulador tem de ter ponto de vista nesse negócio. Tenho a impressão que é um comentário meio geral que as regras que tratam de governança mesmo, de funcionamento de conselho, comitês, independência ficam bem melhor em norma de autorregulação do que em norma legal. Vários países optaram por colocar isso em leis, inclusive aqui na América Latina, na Ásia e em outros emergentes. A minha impressão é que isso pode ser pior porque traz uma rigidez maior.

Valor: Já sabem algo de concreto que pretendem mudar na 361?

Maria Helena: Não tem concretamente. Ainda estamos estudando o tema. Mas transparência é um tema que preocupa: a divulgação de informações durante o período de uma oferta. Outra questão que também será importante abordar, em caso de existência de disputa de ofertas, são as condições, que nem sempre são comparáveis. Hoje o procedimento de decisão é no leilão e, portanto, é preço. Ainda não sabemos como devemos acomodar as diferenças no momento de uma disputa. Ou se devemos manter como critério para a aquisição das ações apenas o preço.

Valor: Fora do Brasil é comum os conselhos de administração se posicionarem nas tentativas hostis de aquisição. Dizem se é bom ou ruim e opinam até sobre o modelo de negócio proposto . Vocês pensam nisso?

Maria Helena: Não temos o papel da administração suficientemente explicitado na 361 e acho que faz todo o sentido, diante da evolução do nosso mercado, das práticas.

Valor: Isso poderá ser um procedimento obrigatório?

Maria Helena: Sim, pode ser. A necessidade de o administrador se manifestar...

Valor: Outra discussão atual é a formação de um órgão de autorregulação para operações entre companhias, um comitê de fusões e aquisições. A existência desse comitê poderia desafogar a CVM?

Maria Helena: Acho que desafogaria, mas não acho que seria a principal vantagem, sinceramente. E a gente nem poderia defender uma medida desse tipo apenas com essa justificativa. Acho que a análise prévia de operações, à luz de um conjunto de regras que todo mundo conhece, tem uma vantagem muito clara para os participantes do ponto de vista da segurança, da previsibilidade. Para os acionistas minoritários é uma solução muito melhor do que um caso examinado pela CVM dentro daquilo que é a sua atribuição. O resultado de uma atuação da CVM é orientador. Ao impor uma penalidade, orientamos o futuro, mas sem o poder de remediar o passado e evitar ou reverter prejuízos que já tenham sido causados.