Título: Falta de investimento ainda deve ameaçar Argentina em 2010
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 30/12/2009, Internacional, p. A8

Após ter entrado oficialmente em recessão no terceiro trimestre, a economia argentina deverá crescer de 3% a 4% em 2010, impulsionada pela recuperação da safra agrícola e pelas exportações de produtos industriais ao Brasil. Mas terá que lidar com inflação de pelo menos 15%, segundo as previsões mais otimistas, e uma crise fiscal em evidência. Outro desafio será reconquistar o empresariado e criar um ambiente favorável para a retomada dos investimentos.

"O governo superou o fantasma de uma nova moratória e conseguiu controlar a desvalorização do peso", afirma Dante Sica, diretor da consultoria Abeceb.com e ex-secretário de Indústria. A fuga de dólares foi revertida em outubro e o Banco Central tem comprado mais de US$ 100 milhões por dia para manter a cotação da moeda argentina acima de 3,80 pesos por dólar, evitando sua valorização e perda de competitividade das exportações. "O consumo vai bem e os números macroeconômicos estão em ordem. A grande ausência será o investimento."

Para o economista Rogelio Frigerio, a tarefa de recuperar a confiança dos empresários esbarra no ambiente de "insegurança jurídica, discurso antimercado e intervencionismo estatal arbitrário". Frigerio refere-se a episódios como o da fusão entre as operadoras de televisão a cabo Cablevisión (do grupo Clarín) e Multicanal, aprovada pelo órgão de defesa da concorrência em 2007 e depois revertida, em dezembro. O caso foi parar na Justiça, que deu liminar suspendendo em caráter temporário a recente decisão do governo.

Os números oficiais são praticamente desconsiderados pelo mercado desde a intervenção no Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec), há quase três anos. O governo fala em variação do PIB próxima de zero em 2009 e crescimento de até 5% em 2010, com inflação ao redor de 7% ou 8%. Nas empresas e nas consultorias, as estimativas são bem diferentes. A União Industrial Argentina (UIA) tem apontado quedas mensais de até 8% na atividade do setor em relação ao ano passado. Para 2010, no entanto, os principais analistas têm estimado que a economia terá expansão de pelo menos 3%, podendo alcançar 4% ou mesmo um pouco mais. Longe, de qualquer forma, das taxas "chinesas" de crescimento atingidas nos anos anteriores à crise global.

Setores fortemente exportadores, como a indústria automobilística e a de máquinas e equipamentos, deverão pegar carona recuperação do Brasil. "De cada 100 veículos fabricados na Argentina, 51 se destinam ao mercado brasileiro", explica Dante Sica. Segmentos voltados ao mercado interno mostram expectativas diferentes. O ramo de alimentos e de têxteis deverá ter crescimento inferior a 1%. Já as vendas de cimento poderão aumentar 4%, acredita a Loma Negra, maior cimenteira da Argentina e controlada pela brasileira Camargo Corrêa. "Há uma recuperação dos investimentos na construção civil", afirma Ricardo Mendonça Lima, diretor-geral da Loma Negra, que anunciou projetos para elevar a produção anual de cimento de 5,5 milhões para 7,3 milhões de toneladas.

Um impulso será dado pela "renda universal por filho", uma espécie de Bolsa Família recém-lançada pela presidente Cristina Kirchner, que distribuirá 180 pesos (cerca de US$ 50) para cada criança de pais desempregados ou sem carteira assinada. Mas Orlando Ferreres, ex-número 2 do Ministério da Economia e dono de uma das consultorias prestigiada de Buenos Aires, destaca que boa parte da recuperação argentina está vinculada à renda do setor agropecuário, cujo PIB deverá aumentar 19,8% em 2010. Neste ano, houve uma queda de 16% - consequência direta da seca e dos conflitos do campo com o governo.

Para ele, a inflação chegará a 17,5% no próximo ano. Isso poderá reaquecer as greves e confrontos sindicais para recuperar o poder aquisitivo. Para a Abeceb.com, a alta de preços será de 15%, "o que não significa uma explosão em relação a anos anteriores", afirma o ex-secretário Sica. "Mas é preocupante para qualquer país estabilizar sua taxa de inflação em dois dígitos."

Uma das grandes questões em aberto é como o governo financiará o gasto público consolidado (União, Províncias, municípios), que atingiu um nível recorde de 43% do PIB. Hoje ninguém mais fala no risco de uma nova moratória, como o mercado chegou a cogitar em 2009, mas as províncias tiveram o primeiro déficit primário em sete anos e algumas delas já falam em ressuscitar as moedas paralelas, como o patacón, para pagar os salários de servidores.

O governo argentino criou um fundo de US$ 6,5 bilhões para garantir o pagamento dos títulos que vencem em 2010. Isso equivale a menos de 15% das reservas internacionais do Banco Central. Os economistas dizem que a medida afasta o maior temor dos investidores - o calote -, mas apontam a solução considerada ideal: acertar a situação com os "holdouts" (credores que rejeitaram a primeira oferta de renegociação da dívida em moratória desde 2002) e com o Clube de Paris. Juntos, esses credores ainda têm US$ 30,5 bilhões a receber. Nas próximas semanas, a Argentina formalizará na SEC (a CVM americana) uma proposta aos "holdouts", cujos títulos somam US$ 24 bilhões. Eles deverão abrir mão de pelo menos 75% do valor de face dos títulos e a expectativa do governo é que a adesão atinja mais de 60%. Se isso realmente ocorrer, podem estar reabertas as portas do mercado internacional à Argentina.