Título: Endividamento cresce bem acima da renda
Autor: amucci , SeLrgio
Fonte: Valor Econômico, 13/01/2010, Especial, p. A10

O endividamento das famílias bateu recorde no fim do ano passado. No acumulado em 12 meses, até novembro de 2009, o total de empréstimo concedidos as pessoas físicas representava 39,3% da massa anual de rendimentos do país, uma participação quase quatro pontos percentuais superior àquela de igual período de 2008, segundo estimativas da LCA Consultores, que cruza dados do Banco Central sobre estoque de crédito com uma estimativa de massa salarial que soma emprego formal, ocupações informais e pagamentos da Previdência - valor que supera R$ 1,3 trilhão em bases anuais.

No atual pós-crise, ao mesmo tempo em que a recuperação do consumo ganhava uma aceleração recorde no país, as fábricas começaram a ocupar a ociosidade em uma velocidade também surpreendente. Na crise de 2008 para 2009, o nível de utilização da capacidade instalada (Nuci) na indústria caiu durante oito meses seguidos, período em que encolheu nove pontos (entre o pico de junho de 2008 e o vale de março de 2009). Desta queda, 5,9 pontos (ou 67%) foram recuperados em nove meses. Na recessão anterior, em 2003, a queda foi muito mais suave (1,8 ponto em seis meses), e a recuperação também - em nove meses, ela acumulou 2,3 pontos de alta.

A combinação de aceleração no ritmo de consumo e de redução da ociosidade das fábricas aumentou o debate, entre analistas, acerca da capacidade da economia brasileira sustentar tais níveis. Todos os economistas concordam que o ritmo de aumento do consumo observado no fim do ano passado é insustentável. A partir desta avaliação, contudo, as opiniões se dividem. Para um grupo de analistas, o ritmo de consumo vai arrefecer naturalmente, porque foi inflado por uma antecipação de compras. Para outros, contudo, a retração só virá por ação do Banco Central - e para alguns deste grupo, o aumento dos juros pode vir ainda neste primeiro trimestre.

"Quem trocou de carro no ano passado não vai trocar de novo neste ano", aposta Bráulio Borges, economista-chefe da LCA. Para ele e para Bernardo Wjuniski, economista da Tendências Consultoria, as medidas de estímulo realizadas pelo governo, que isentou de impostos a indústria automobilística e os fabricantes de eletrodomésticos da linha branca, serviram para antecipar o consumo que ocorreria normalmente em 2010.

Para reforçar seu ponto, Borges diz que a Sondagem de Expectativas do Consumidor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), mostra desde setembro uma queda na média móvel de três meses na intenção de compra de bens duráveis, apesar de a confiança seguir em alta no período. Segundo ele, uma evidência significativa de que muitos consumidores já anteciparam as aquisições desses produtos em 2009. "É provável que muita gente agora dê prioridade à compra do imóvel, e não à aquisição de bens duráveis."

A taxa anual de crescimento do consumo das famílias, porém, deve aumentar dos cerca de 3% em 2009 para patamares próximos a 5% em 2010, estima Wjuniski, apontando a melhora do mercado de trabalho e da massa de rendimentos. É improvável, segundo ele, que se repitam os 7% registrados em 2007. Borges estima uma alta de 6,1% neste ano para o consumo das famílias, mas aposta que o ritmo trimestral vai perder força ao longo do ano.

O economista-chefe do J.P. Morgan, Fábio Akira, vê um consumo mais aquecido do que Wujiniski e Borges. Para ele, a demanda deve continuar a crescer com força, dada a força do mercado de trabalho, o reajuste significativo das aposentadorias e a expansão do crédito. "A taxa de desemprego começa o ano perto das mínimas históricas, o salário mínimo subiu 9,7%, os bancos públicos devem continuar a ofertar muitos empréstimos e a expectativa é que os bancos privados acelerem as concessões", diz ele. "Do ponto de vista do mercado de trabalho e do crédito, é difícil apostar em desaceleração da demanda final", argumenta. Ele acredita que o consumo das famílias poderá crescer 6,8% em 2010.

A comparação da evolução do rendimento real nas seis principais regiões metropolitanas com o estoque de crédito para a pessoa física indica um crescimento dos débitos acima da evolução da renda. Nos 12 meses até novembro, as operações de empréstimos e financiamentos cresceram 18,4%, seis vezes mais rápido que o rendimento real. Um ano antes, o estoque de crédito crescia 24,6%, mas o ritmo era apenas 3,3 vezes superior ao da renda. É mais um número a sugerir uma menor capacidade do consumidor de assumir novas dívidas.

Um outro indicador calculado por Borges aponta para um quadro mais confortável. Segundo ele, o comprometimento da renda mensal com o pagamento dos débitos ficou em 15,2% em novembro passado, abaixo dos 15,9% de novembro de 2008. "Isso se explica pelo aumento do prazo médio dos empréstimos para a pessoa física, que no período passou de 25,6 para 30,6 meses". Nesse cenário, o consumidor compromete um percentual até um pouco menor da renda com o pagamento de empréstimos, ainda que tenha contraído mais dívidas. Ele também observa que, em muitos países desenvolvidos, o nível de endividamento das famílias chega a superar 100%, bem mais que os 39,3% do Brasil.

Para Akira, um sinal claro do aquecimento da demanda é o aumento expressivo do volume importado de bens duráveis (como automóveis e eletroeletrônicos) nos últimos meses, um movimento também influenciado pela valorização do câmbio. De fevereiro a novembro de 2009, a quantidade importada de duráveis aumentou 65,9%, ficando apenas 0,82% abaixo do nível recorde atingido em em julho de 2008, na série com ajustes sazonal da LCA, que começa em 1995. Borges pondera, contudo, que parte desse movimento é uma recuperação do terreno pelos importados, que haviam perdido uma parcela do mercado nacional quando o dólar passou a ser negociado a níveis bem superiores a R$ 2,00 - hoje, o dólar já bate na barreira dos R$ 1,70.

Segundo dados da Serasa Experian, o varejo registrou uma forte expansão em 2009, de 10,8%. No entanto, para Luiz Rabi, economista da instituição, o ritmo neste ano deverá arrefecer, rodando próximo a 8%. Segundo ele, a trajetória de alta, a partir do segundo semestre de 2009, se deu graças à base mais baixa na comparação com o ano anterior, quando a crise mundial se acirrou. "Não repetiremos uma taxa alta neste ano, porque os incentivos fiscais serão desativados e o câmbio, que se valorizou em 25% no ano passado, não ajudará da mesma forma", avalia Rabi. "Ainda assim, um avanço de 8%, ou mais, não deixa de ser forte".