Título: Lei proposta pelo Senado traz risco de impunidade
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/12/2009, Opinião, p. A10

Sob o pretexto de modernizar o Código de Processo Penal brasileiro, que data de 1941, o plenário do Senado criou, em maio, uma comissão composta por nove juristas, e deu a ela um prazo de 180 dias para elaborar um anteprojeto, que finalmente foi levado à tramitação com a assinatura do presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP). Prazo pequeno demais para uma tarefa dessa magnitude ou interesses grandes demais para um debate tão reduzido - o fato é que o produto final da reforma levada ao Senado, se aprovado como está, pode inviabilizar a ação da Justiça contra vários crimes, em especial os econômicos e os imputados a diversos deputados e senadores que, em algum momento, deverão ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por força do foro privilegiado.

Segundo relata a coluna assinada pela repórter especial Cristine Prestes, publicada na edição de ontem do Valor, a Polícia Federal e o Ministério Público só poderão instaurar inquéritos contra os detentores de foro privilegiado - deputados, senadores, presidente da República, ministros de Estado etc. - mediante autorização do órgão competente para julgá-los, o STF. Somente o Supremo, nesse caso, poderá exercer as funções da figura do "juiz de garantias" - aquele que pode receber do Ministério Público pedidos de medidas cautelares para a produção de provas (buscas e apreensões, interceptações telefônicas e quebras de sigilo bancário e fiscal etc). Ou seja, após a constatação, nesse 21 anos que nos separam da promulgação da Constituição de 1988, de que o foro privilegiado impede a responsabilização criminal de agentes públicos inclusive pelo fato de o STF não ser aparelhado para produzir investigações e julgar ações de natureza criminal, é ao maior tribunal do país que a comissão dirige não apenas a investigação de crimes cometidos por esses agentes públicos. Mais do que isso, a proposta da comissão "terceiriza" o foro privilegiado, ao dispor que todos os envolvidos num processo onde uma só pessoa tenha direito a esse foro sejam julgados pelo STF. Ou seja, o "privilégio" de ter cometido um crime na companhia de um parlamentar federal ou de um ministro de Estado leva todo e qualquer réu ao banco do Supremo. É para lá que convergirão, dessa forma, boa parte dos processos penais por crimes econômicos.

Outros elementos induzem à conclusão de que a primeira instância judicial sofrerá grande esvaziamento, no caso de aprovação da Lei Sarney - ou "Lei Satiagraha", uma alusão à operação da Polícia Federal que envolveu o empresário Daniel Dantas, que recentemente conseguiu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) uma liminar que garantiu o afastamento temporário do juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo. O projeto de lei introduz mecanismos que facilitam o afastamento de juízes de instrução por suspeição - e a definição da "suspeição" é feita de forma tão aberta que será muito simples retirar de cena um juiz incômodo para o réu. Além disso, a proposta separa as funções de um juiz de instrução e de um juiz de garantias - este último passa a receber cautelares do MP para produção de provas. O juiz de instrução, pela nova lei, traz o pecado original de estar "contaminado" por opiniões formadas na fase de instrução. Já começaria o processo na condição de suspeito. A nova lei, se aprovada, transformará o juiz de primeira instância em réu e dará tantas garantias ao réu de fato que uma condenação será surpresa.

Em artigo publicado no Valor, no dia 13, o juiz Fausto De Sanctis também aponta uma proliferação de possibilidades procrastinadoras no projeto - como o poder conferido ao juiz sucessor de repetir todas as provas produzidas anteriormente. E a enorme dificuldade que se terá de decretar uma prisão preventiva. O projeto prevê nove possibilidades antes da decretação da prisão.

O argumento de que o código genético das leis penais brasileiras é autoritário, já que data do Estado Novo, não justifica uma nova lei vir à luz com o código do privilégio e das garantias aos infratores. Não se pode voltar à estaca zero no combate aos chamados crimes do colarinho branco, sob pena de desacreditar-se ainda mais a Justiça e consolidar a imagem que desfruta perante o cidadão de que só consegue punir os pobres, jamais os ricos e poderosos.