Título: O fim do laissez-faire
Autor: Graziano da Silva , José
Fonte: Valor Econômico, 18/01/2010, Opinião, p. A12

O século XXI completa a primeira década ainda distante de uma governança global a altura dos grandes desafios que angustiam o nosso tempo. Os três grandes pilares que pautaram a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) - a consolidação da paz, o fim da fome e o convívio sustentável entre desenvolvimento e natureza - persistem como agendas em aberto.

Vencer a fome é uma premência ecumênica endossada em todas as latitudes políticas e geográficas. Foi pactuada na 1ª Cúpula Mundial da Alimentação promovida pela Food and Agriculture Organization (FAO) em 1996 e consagrada como o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio em 2000, quando 198 nações se comprometeram a reduzir à metade o total de pessoas com fome no mundo até 2015. Não por acaso a luta contra a subnutrição integra o primeiro objetivo: persistindo a fome, nenhuma das outras metas será alcançada.

Sucessivas postergações de recursos e promessas não cumpridas ameaçam que se alcance esse objetivo a nível mundial. No tempo agora disponível, seria preciso retirar uma média de

100 milhões de pessoas por ano da insegurança alimentar e impedir que novos contingentes viessem a ocupar o seu lugar para atingir as metas de 2015.

A verdade, porém, é que o mundo pode ir além da mitigação nessa esfera. Se as nações pobres assumirem o desafio de erradicar a fome e se os países ricos apoiarem esse esforço aumentando os recursos destinados ao desenvolvimento agrícola e segurança alimentar, mudaríamos o século. Seriam necessários investimentos de aproximadamente US$ 44 bilhões por ano, uma quantia modesta se comparada aos US$ 12 trilhões alocados em menos de dois anos para socorrer bancos e instituições responsáveis pela atual crise.

Entre as possibilidades do presente e a construção do futuro, o acanhamento das iniciativas de coordenação internacionais para a manutenção da paz, a erradicação da fome e o equilíbrio do clima, tem o peso de um crime contra a humanidade. O que se viu em Copenhague, na CoP-15, foi a repetição do mesmo desencontro entre agendas, forças e recursos que convivem mas já não interagem com a coerência e a rapidez requeridas pelo relógio da história.

Repete-se na versão ambiental aquilo que a FAO tem apontado como um problema de fundo na luta contra a fome. A persistência da insegurança alimentar não está mais relacionada fundamentalmente à restrição de recursos. Embora a oferta de alimentos tenha que crescer 70% para saciar 9 bilhões de bocas em 2050, cerca de 50% a mais que hoje, já dispomos em grande parte da tecnologia e dos recursos físicos necessários para erradicar a fome. A grande ameaça é a fragilidade do arcabouço institucional que deveria coordenar a caminhada.

A supremacia das finanças desreguladas atrofiou a capacidade de planejamento dos governos nacionais. Mas, sobretudo, rebaixou o poder das iniciativas multilaterais, em especial aquelas de natureza mais diretamente social. A sucessão de bolhas especulativas demarcadas há anos pelo colapso imobiliário japonês e, recentemente, pela explosão das subprimes reflete o curso de forças que permanecem fora do controle da sociedade e dos Estados. Sua influência na formação dos preços das commodities em geral, e na dos alimentos em particular, explica em grande parte a regressão verificada na segurança alimentar do planeta nos últimos dois anos.

As cotações atuais das commodities alimentares indicam que as distorções que deram origem à crise de 2008 continuam a pulsar livremente. O Índice de Preços de Alimentos da FAO atingiu 172 pontos em dezembro de 2009, o patamar mais alto desde setembro de 2008. Antes do dominó especulativo de 2006/2008, o indicador da FAO jamais ultrapassara a marca dos 129 pontos desde que foi criado, em 1990.

A retomada altista destoa, inclusive, dos níveis mais robustos dos estoques, lubrificados pela involuntária redução da dieta alimentar de populações pobres, atingidas duramente pela crise, que agigantou o número de famintos para mais de 1 bilhão em todo o planeta.

É na desregulação financeira - que continua a deter o mando do jogo nas economias mais ricas - que se deve buscar a explicação para a volatilidade atual dos mercados. Sem uma revisão nessa arquitetura financeira a vitória contra a fome ficará ainda mais distante. A regulação do poder financeiro não é um requisito apenas da segurança alimentar, mas um imperativo do próprio desenvolvimento sustentável em todos os países.

Paul Krugman no encerramento do ExpoManagement, realizado recentemente em São Paulo, alertou: "Temos que evitar a Bolha Brasil, uma imensa onda de liquidez capaz de derrubar o câmbio, inflar o crédito e as bolsas no atual favorito dos mercados de capitais globais".

Por quase três décadas, o mundo renunciou à agenda do desenvolvimento. Responsabilidades intransferíveis do setor público foram terceirizadas aos chamados "livres mercados". A desatenção com as políticas agrícolas foi um dos capítulos mais desastrosos desse processo. Em muitos países, levou ao abandono das políticas de crédito e fomento, penalizando sobretudo os pequenos produtores responsáveis por grande parte do abastecimento. Promessas de abastecimento "just-in-time" no ambiente global revelaram-se um mito desastroso no plano local.

Não há parceria consistente entre "laissez-faire", desenvolvimento sustentável e segurança alimentar. Na Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, realizada em novembro, em Roma, a FAO soube extrair as lições desse duro aprendizado, materializadas numa estratégia de reordenação de prioridades e reforma dos mecanismos de governança mundial da segurança alimentar. Sua orientação é aprofundar as políticas agrícolas e de segurança alimentar na esfera nacional e regional, sob o guarda-chuva do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, ampliado para incluir a sociedade civil (ONGs e iniciativa privada).

Como retomar a precedência do desenvolvimento agrícola e assegurar o direito à alimentação de todos será um dos eixos das conferências regionais da FAO para 2010. O debate sobre América Latina e Caribe acontecerá no final de abril, na cidade do Panamá. Dele se esperam decisões para reverter o aumento da subnutrição percebido desde 2006, retomando a caminhada que nos levará ao cumprimento das metas de redução da fome até sua total