Título: Argentina abre exceção à lei e por decreto afasta o presidente do BC
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 08/01/2010, Internacional, p. A9

O presidente do Banco Central da Argentina, Martín Redrado, foi demitido ontem à noite por meio de um decreto de necessidade e urgência (equivalente à medida provisória do Brasil) que abriu exceção no estatuto do BC que garantia sua autonomia do banco. A medida foi amplamente criticado no país. Redrado disse que pedirá à Justiça a anulação do decreto.

O decreto tem cinco artigos e retira Redrado do cargo por "incorrer em má conduta e descumprir deveres de funcionário público".

A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, cancelou suas atividades e convocou todo o gabinete para uma reunião de emergência na Casa Rosada. Muitos tiveram que voltar às pressas de praias onde passavam as férias para assinar conjuntamente o decreto.

Para demitir Redrado, que havia recusado anteontem um pedido de renúncia, o governo precisou abrir uma exceção no estatuto da autoridade monetária. "É uma medida que não gostei de tomar", disse Cristina. Até o fechamento desta edição Redrado estava reunido com seus advogados da sede do BC e não havia ainda se pronunciado.

No artigo 9 de sua carta orgânica, baseado na lei de 1992 que assegurou independência ao BC, está prevista a possibilidade de demissão do presidente. Para isso, no entanto, o governo necessitaria do aval de uma comissão mista do Congresso, encabeçada pelo presidente do Senado. O problema é que o governo perdeu a maioria parlamentar em dezembro, e o presidente do Senado é o vice-presidente da República, Julio Cobos, que rompeu com o governo.

O decreto determina que "se excetua a aplicação do artigo 9" da carta orgânica do BC no caso de Redrado. À frente da instituição desde 2004, quando foi indicado pelo ex-presidente Néstor Kirchner, Redrado teria ainda mais nove meses de mandato. Além dessa mudança, o governo orientou o procurador geral da União a iniciar uma ação judicial contra Redrado, que se negou a transferir US$ 6,5 bilhões das reservas internacionais para o Tesouro, para o pagamento de dívida com vencimento em 2010.

O chefe de gabinete da Presidência e principal ministro da área política, Aníbal Fernández, informou que o decreto seguirá para o Congresso, mas que a consulta aos parlamentares terá caráter "não vinculante" e servirá de "simples conselho". Segundo ele, Redrado será notificado hoje de manhã e terá que deixar suas funções.

Pelo estatuto do BC, assume a presidência, ao menos interinamente, o vice, Miguel Ángel Pesce, que entrou ontem no centro da crise ao causar um racha dentro da instituição. Alinhando-se à Casa Rosada, Pesce defendeu a transferência das reservas ao Tesouro e criticou a postura de Redrado.

Em seguida, o vice-presidente coordenou uma reunião - desautorizada por Redrado - com seis dos dez diretores do BC. Para validar qualquer decisão, como aumento ou queda da taxa de juros e a aplicação das reservas, é necessário o voto de ao menos cinco diretores. Mas o estatuto do BC não diz nada sobre a exigência de que o presidente esteja entre esses cinco.

A oposição vociferou contra o decreto de Cristina. A líder esquerdista Elisa Carrió disse que "o caminho é a Justiça" e recomendou a Redrado um pedido de liminar para manter-se no cargo. "O governo deveria convocar imediatamente o Congresso", afirmou o líder da oposicionista União Cívica Radical (UCR) no Senado, Gerardo Morales. Já havia irritação entre os parlamentares pelo fato de que o decreto criando o Fundo do Bicentenário, para o qual destinam-se US$ 6,5 bilhões dos US$ 48 bilhões em reservas internacionais, foi publicado apenas cinco dias após o início do recesso legislativo.

Julio Cobos, pré-candidato à sucessão de Cristina na eleição de 2011, interrompeu suas férias e voltou a Buenos Aires para discutir a crise. Para o jornal "La Nación", a crise se deve ao desejo do casal Kirchner de governar sem limites.

O ministro da Economia, Amado Boudou, rebateu as críticas dizendo que "o Banco Central estava começando a anarquizar-se".

Apesar do ambiente de crise institucional, os mercados se mantiveram tranquilos ontem e o BC atuou normalmente, sem reflexos práticos do racha na instituição. A cotação do dólar ficou estável, a 3,83 pesos, mas a autoridade monetária comprou US$ 100 milhões para segurar a moeda americana.

A pressão sobre Redrado foi respaldada pelos bancos privados da Argentina, cuja associação apoiou o governo e pediu sua saída em prol da "estabilidade financeira".

O sócio-diretor de finanças corporativas da Deloitte & Touch, Miguel Ángel Arrigoni, faz parte do grupo de economistas que defende o uso das reservas para pagamento da dívida e discordou da avaliação predominante. Para ele, Redrado não se opõe à medida em si, mas ao "timing" dela, e procura respaldar-se juridicamente. "Não há país no mundo que tenha ido à moratória sem antes usar suas reservas", disse ao Valor. "Além disso, estamos falando de menos de 15% das reservas atuais", completou o economista, que discorda da análise de que o dinheiro liberado do orçamento criará estímulos à demanda, com pressão sobre a inflação, já superior a 15%