Título: Evo mescla 'ortodoxia' e programas sociais
Autor: Moura , Marcos
Fonte: Valor Econômico, 04/12/2009, Internacional, p. A13

Pelo segundo ano seguido, Gustavo Vega recebeu do governo do presidente Evo Morales um cheque de 200 bolivianos (cerca de R$ 50) para ajudar a cobrir os gastos que tem com a filha em idade escolar. Em 2008, Vega usou o dinheiro para comprar uma mochila nova e sapatos para ela. Neste ano, cedeu a um capricho da filha e com o recurso comprou uma penteadeira.

"Isso ajuda muita gente no país. Muitas famílias mais pobres que a minha usam o bônus até para comprar comida", diz Vega, de 55 anos, que ganha a vida como taxista em La Paz. Ele tem seis filhos - dois deles pequenos, a garota, de 8 anos, e o caçula, de 3.

O bônus se chama Juancito Pinto, uma versão do governo Morales do antigo Bolsa Escola brasileiro e que deve atender este ano a 1,85 milhão de crianças de famílias de baixa renda que estão frequentando a escola. O governo diz que este ano desembolsará 370,6 milhões de bolivianos (R$ 90 milhões) no programa. "Eu votava na ADN [partido do ex-presidente Hugo Bánzer] mas agora voto no MAS [de Morales]. Evo está pondo o dinheiro do país para ajudar o povo" diz Vega. Dois de seus netos também recebem o auxílio estatal.

O Juancito Pinto, criado em 2006, primeiro ano de mandato de Morales, foi um dos feitos sociais mais explorados pelo governo durante a campanha pela reeleição do presidente. A eleição acontece domingo e Morales lidera com folga enorme: tem cerca 60% das intenções de voto. O segundo candidato tem cerca de 20%.

Os recursos do bolsa escola boliviano, assim como o de outros bônus, vêm dos hidrocarbonetos. O governo apresenta o bônus como "um beneficio da nacionalização dos hidrocarbonetos" - ocorrida em 2006. Junto com o setor mineral, os hidrocarbonetos respondem por quase 80% das exportações do país. Morales também distribui um bônus para mulheres grávidas (de 1.820 bolivianos, cerca de R$ 440, parcelados do pré-natal até a criança completar dois anos); e ampliou um bônus de até 3.000 bolivianos (R$ 730) para quem tem mais de 60 anos.

Mas o primeiro presidente indígena da Bolívia, visto inicialmente com tremenda reticência pelas classes e A e B no país mais pobre da América do Sul e também pelos organismos internacionais, termina seu primeiro mandato não apenas com a imagem de presidente companheiro dos pobres - o que aqui quer dizer companheiro da maioria absoluta da população. Termina seus primeiros quatro anos de governo também como um presidente que soube manejar a macroeconomia de uma forma bastante razoável - a ponto de este ano ter sido brindado com elogios do Fundo Monetário Internacional (FMI), o mesmo que os socialistas do MAS cansaram de demonizar como arauto de um devastador neoliberalismo que orientou governos anteriores.

Sob Morales, as reservas internacionais subiram de US$ 1,71 bilhão no ano anterior ao início do mandato para algo perto de US$ 9 bilhões este ano; as exportações bateram recordes; o país registrou superávit no setor público não financeiro, revertendo déficits consecutivos que vinham desde 1970; e a inflação puxada pelos alimentos, que passou dos 15% nos dois primeiros anos do governo, caiu e deve ficar entre 2% a 3% em 2009. Além de tudo isso, o dado que o governo ostenta como medalha: o PIB boliviano que cresceu sempre acima dos 4% sob Morales este ano deve crescer perto dos 3%. Será, segundo projeções do FMI incluídas no estudo de outubro "Perspectivas Econômicas nas Américas", o maior crescimento de toda a América Latina. O FMI diz que o país crescimento de 2,8%.

"Os indicadores mostram que a economia está sendo administrada de maneira razoável, até o FMI elogia Morales", diz o economista Gonzalo Chávez, professor da Universidade Católica Boliviana San Pablo, de La Paz. "De um certo ponto de vista, os últimos anos mostram indicadores tão bons quanto o do período dos neoliberais", provoca ele.

Pelos parâmetros políticos atuais da América Latina, Morales talvez se pareça ao cabo de quatro anos com a faixa de presidente mais com de Luiz Inácio Lula da Silva - com programas sociais casados com uma política econômica ortodoxa - do que com seu aliado bolivariano Hugo Chávez, que criou nos últimos anos uma série de desequilíbrios e disfunções na economia venezuelana. Segundo o Ministério de Economia e Finanças, "o motor do crescimento econômico se deveu ao impulso que se deu, desde 2006, à demanda interna e à redistribuição de renda".

Mas o maior impulso foi dado mesmo pela escalada dos preços do petróleo e do gás, que chegaram a um pico recorde em 2008 e ajudaram a inflar o caixa do governo - que passou a abocanhar uma fatia bem maior do setor após a renegociação dos contratos com as petroleiras em 2007. O que analistas na Bolívia se perguntam - sem otimismo - é o que acontecerá com o fim dessa bonança de preços para uma país tão dependente da receita do gás.

"Mais da metade dos gastos correntes são financiados pelos hidrocarbonetos. O problema é que os preços estão caindo e a capacidade de produção também está caindo. Além disso, os mercados da Argentina e do Brasil para o gás boliviano já não são tão grandes", diz Susanne Käss, da Fundação Konrad Adenauer na capital boliviana. Um acompanhamento feito pela Fundação Milenio, outro centro de pesquisas, mostra que o preço do gás no mercado internacional em julho de 2008 passava dos US$ 13 o milhão de BTUs. Em junho de 2009 estava em US$ 3,49.

"Evo tinha prometido industrialização, diversificação produtiva, saída da dependência complicada dos recursos naturais - que expõe o país a sempre depender dos mercados externos", diz Gonzalo Chávez. "O risco continua sendo ficarmos numa economia que não gera empregos de qualidade, dependente de quatro commodities e quando a bonança acabar, o país sofrerá com isso."