Título: Ciclo básico sofre com desigualdades e pouco resultado
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Fonte: Valor Econômico, 04/12/2009, Especial, p. F5

Não está na Olimpíada, nem na Copa do Mundo. Nem nas metas de manter o PIB em alta e a inflação controlada. O verdadeiro desafio nacional é educar com qualidade os quase 54 milhões de pequenos candidatos a cidadãos hoje com 4 a 17 anos de idade. Eles são, junto com os educadores, os personagens principais do universo da educação básica brasileira, que inclui os segmentos infantil (creche e pré-escola), fundamental e ensino médio, além da educação de jovens e adultos e a especial.

Não bastasse a dimensão, é ainda um universo muito heterogêneo, com enormes desigualdades entre cidades grandes e pequenos povoados, entre Norte-Nordeste e Sul-Sudeste, entre ricos e pobres. O tamanho do desafio agora tem mensuração oficial. Criado em 2007, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que combina dados de repetência e evasão com os resultados da Prova Brasil (português e matemática para o ensino fundamental) e do Enem (para o ensino médio), revelou a distância do país em relação ao chamado mundo desenvolvido, em que índice similar estaria na casa dos 6 (numa escala de 0 a 10).

No Brasil, o Ideb do ensino fundamental foi de aproximadamente 4 (3,8 para o fundamental I e 4,2 para o fundamental II) e o do ensino médio, 3,5. A porcentagem de crianças de 10 a 14 anos com mais de dois anos de atraso escolar ficou em 13,3%. É preciso mudar esse quadro, sob pena de a geração escolar de hoje repetir a situação dos brasileiros que tinham 25 anos ou mais em 2007 - a média nacional era de apenas 6,9 anos de escolaridade, enquanto a dos países desenvolvidos situava-se entre 12 e 13 anos. É uma condição de "lanterna" insustentável para um país que projeta crescer a 4 a 5% ao ano no próximo decênio.

As autoridades federais da área parecem conscientes da "pedreira" que têm pela frente. "Ainda temos 600 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola", constata a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Almeida e Silva. "Nunca tivemos uma escola verdadeiramente pública, igual para ricos e pobres, como nos Estados Unidos e na França, e precisamos construí-la num momento de mudança tecnológica, para fazê-la contemporânea, digital." Maria do Pilar acredita na possibilidade de mudança desse quadro com a recente aprovação pelo Congresso da Emenda Constitucional nº 59, que estabelece um calendário para pôr fim gradual à DRU (Desvinculação de Receitas da União) sobre as verbas federais destinadas à educação.

Desde 1994, a DRU retira da educação 20% do total de seus recursos. Com a emenda, de 11 de novembro passado, esse percentual cai para 12,5% em 2009, 5% em 2010 e deixa de existir em 2011. Serão de R$ 9 bilhões a R$ 11 bilhões a mais para escolas, professores, livros e merenda até 2011. De quebra, a mesma emenda torna obrigatório o ensino para todos os brasileiros de 4 a 17 anos (não mais de 7 a 14, conforme estabelecia o texto original da Constituição de 1988). "Teremos tempo de ensino obrigatório similar ao da Alemanha", afirma a secretária. Noves fora, aumentam os recursos e as responsabilidades.

O MEC abriu as portas de universidades públicas para que 300 mil professores do ensino básico voltassem às aulas (são 50 mil novas matrículas só neste semestre, na chamada Plataforma Freire, que oferece cursos presenciais ou a distância) e trabalhou para que o Congresso Nacional aprovasse o piso salarial nacional, hoje em torno de R$ 1.100 mensais por 40 horas/aula. Além de triplicar o valor das chamadas transferências obrigatórias do ministério para Estados e municípios (nas quais estão os recursos da merenda escolar e dos livros didáticos) e mudar os critérios para repasse das transferências voluntárias.

Com o Ideb, relata Maria do Pilar, foi possível identificar 1.242 municípios (80% deles no Norte e no Nordeste), dos mais de 5 mil do país, que nunca haviam sido agraciados com montantes "voluntários", porque não tinham capacidade sequer para elaborar o Plano de Trabalho. "São localidades em que o secretário de educação atende ao telefone na barbearia", comenta. O MEC levou pessoal de universidades federais a esses rincões e identificou duas demandas fundamentais - formação de alfabetizadores e bibliotecas.

Mesmo considerando que a política global do governo está no caminho certo, o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Franklin Leão, insiste na necessidade de conjugar a luta por mais verbas com a gestão democrática das escolas e a valorização dos profissionais. "Como vamos atrair e manter jovens na carreira de professor com uma remuneração inicial de 20h para docentes de nível médio de R$ 431,40, abaixo do salário mínimo, como é no Rio Grande do Sul, ou de R$ 1 mil em Roraima, para quem tem licenciatura plena?", pergunta o sindicalista.

Leão discorda da avaliação dos técnicos do MEC, para os quais a maior parte dos Estados já cumpre a lei 11.738, de 2008, que estabeleceu o piso nacional de cerca de R$ 1.000 para jornada de 40 horas (com um terço dessas horas dedicado a atividades extraclasse). De fato, dias depois da sanção presidencial à Lei do Piso, aprovada por unanimidade no Congresso, os governos de Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina arguiram, no STF, a inconstitucionalidade da norma, mas tiveram liminar negada. "Onde já se viu essa atitude?", indaga Leão. "A Constituição, que determina 25% do Orçamento para a educação, está acima da Lei de Responsabilidade Fiscal."

Em 2007, o Brasil investiu em educação 5,1% do PIB - contra 6% da Argentina, por exemplo. "Para avançar na educação básica, precisamos investir 7%", reconhece Maria do Pilar Almeida e Silva. "Eu acho justo que as verbas para a educação cresçam na proporção do crescimento do PIB também", afirma Leão. Talvez seja hora de, acima de debates ideológicos e partidários, repensar as leis. Para correr com alguma chance atrás do prejuízo.