Título: A livre concorrência no crédito
Autor: Troster , Roberto Luis
Fonte: Valor Econômico, 09/12/2009, Opinião, p. A16

O sistema financeiro brasileiro apresenta níveis elevados de rentabilidade, solvência, sofisticação e capilaridade e tem potencial para ser um dos pilares do desenvolvimento. Mas, sua eficiência é baixa, está entre as piores do mundo. Aprimoramentos nas condições de livre concorrência melhorariam o quadro.

Alguns números ilustram a situação. O último relatório do Banco Central (BC) mostra que a conta garantida, um recurso emergencial para empresas, representa 11,9% do total do estoque, 35,3% da receita de juros e 47,3% da receita líquida (spread) do crédito pessoa jurídica. Menos de um oitavo do estoque responde pela metade da receita líquida na modalidade empresarial (se o cálculo for líquido de inadimplência, o valor sobe para 57%!).

Na pessoa física, observa-se algo similar, o cheque especial corresponde a 11,1% do estoque do crédito pessoal, e sua receita líquida equivale a 48,2% da modalidade comparada. Os números mostram que tanto empresas como indivíduos gastam muito com uma fração pequena do crédito. Quando os números de inadimplência são incluídos, essas modalidades respondem por uma participação ainda maior nos ganhos das instituições.

Outro exemplo, emblemático, é o da fatura de cartão, vencida (e paga) em novembro de uma senhora, casada, residente em imóvel próprio há mais de 15 anos, cliente da instituição há mais de 25 anos, boa pagadora, sem nenhum evento que deponha contra, com rendas de um imóvel que aluga e o salário com carteira assinada. As taxas para financiar seu cartão são de 342,51% ao ano e, para parcelar, de 323,85% ao ano! É uma dívida que, se rolada, mais que quadruplica em um ano. Uma distorção do sistema ou um sistema distorcido?

O custo do crédito bancário é um dos mais altos do mundo. Na pessoa jurídica a taxa média brasileira é mais de dez vezes superior à norte-americana e na pessoa física a diferença é ainda maior. Esse quadro, com a predominância de recursos emergenciais e juros nesse patamar, inviabiliza uma relação crédito/PIB elevada e sufocará a contribuição que o sistema financeiro poderia dar ao desenvolvimento do país. Uma dívida crescendo a taxas maiores que a capacidade de pagamento dos tomadores só pode terminar em crise.

Os esforços do atual governo para corrigir as distorções têm se mostrado pífios. A margem (spread) para a pessoa jurídica aumentou desde janeiro de 2003, e a da pessoa física só diminuiu nas modalidades de aquisição de bens e crédito pessoal. Um resultado que não combina com os discursos inflamados anunciando reduções e com a capacidade das instituições financeiras.

Parte da explicação está nas "jabuticabas" como a tributação, os compulsórios mais altos do mundo, os indicadores macroeconômicos e o quadro institucional brasileiro. E parte da causa das distorções está nas condições de concorrência do sistema, que poderiam e deveriam ser melhoradas.

Alguns críticos apontam como causa a concentração - as dez maiores instituições detêm cerca de 90% do sistema financeiro nacional. Entretanto, uma comparação com outros países, ou entre os diferentes setores como telefonia, aviação ou varejo, mostram que não é um valor alto e não explica as imperfeições observadas. O foco não é no número, mas sim nas condições.

No sistema de livre concorrência, um ingrediente essencial é a ideia de igualdade de força dos agentes. Para isso, transparência e liberdade de escolha são fundamentais. Embora as condições perfeitas de um sistema não existam, é recomendável a adoção de seus princípios básicos para obter um resultado mais próximo ao ideal. No caso brasileiro, duas correções, dar mais mobilidade e transparência no mercado de crédito, consertariam substancialmente as falhas acima.

Sobre a mobilidade. Há pouca flexibilidade nos limites de crédito concedidos, com uma oferta rápida e generosa das linhas onerosas e demorada e travada para as baratas. Não é razoável que tomadores de financiamento optem por linhas mais caras, existindo alternativas mais atraentes. A solução seria que as instituições financeiras só pudessem fixar limites globais para cada tomador de acordo com seus critérios internos, entretanto, a escolha da linha de financiamento a ser utilizada fosse decidida pelo devedor e não pelo banco. Permitiria que tomadores pendurados no cheque especial e na conta garantida pudessem mudar rapidamente para um financiamento mais conveniente.

Essa medida apenas, se todos escolhessem migrar, faria com que a margem na pessoa jurídica caísse dos atuais 17,7% para 10,6%, uma redução considerável, melhorando a condição de pagamento dos tomadores e diminuindo a probabilidade de inadimplência para o mesmo volume de crédito. Na pessoa física, a redução seria ainda maior.

A outra correção é dar mais transparência aos preços cobrados pelo crédito. O conhecimento da informação é central para a obtenção da eficiência. A falta de transparência possibilita abusos e limita a capacidade de escolha. Para tanto, cada cliente deveria ter claro qual é sua categoria de risco, a explicação da classificação, e as instituições teriam uma tabela única de taxas por categoria de risco e por tipo de produto. As tabelas comparativas estariam disponíveis para consulta. Algo semelhante às tabelas de preços dos demais setores, onde usuários, reguladores, supervisores e a imprensa tivessem uma visão nítida do que é cobrado e a razão.

Uma melhoria nas condições de livre concorrência com mais transparência e mobilidade, aumentaria a liberdade de escolha, corrigiria algumas distorções e pressionaria as taxas para baixo, aumentando a capacidade de endividamento do país.

Há mais a ser feito; todavia, já haveria um avanço expressivo com essas duas mudanças simples. O momento é bom para ajustes e elas contribuiriam para que o sistema bancário se torne um pilar sólido do desenvolvimento brasileiro.

Roberto Luis Troster é sócio da Delta Consultoria; robertotroster@uol.com.br