Título: Obama está percebendo que às vezes ele 'não pode'
Autor: Luce , Edward
Fonte: Valor Econômico, 21/01/2010, Especial, p. A14

Durante o período de transição, no fim de 2008, quando Barack Obama estava se preparando para assumir o cargo, Rahm Emanuel deu uma palestra contando vantagem diante dos democratas eleitos para o Congresso. O então futuro chefe de Gabinete da Casa Branca previu que a vitória de Obama seria seguida pelo sucesso nas eleições em meio do mandato presidencial, ocasião em que o partido de um presidente geralmente toma uma surra eleitoral. As eleições em meio do mandato em 2010, assegurou a seus colegas, seriam mais parecido com as de 1934 do que com as de 1994.

Em 1934, dois anos após conquistar a Casa Branca, Franklin Roosevelt ajudou a conceber o seria o início de uma geração de domínio democrata no Congresso. Em 1994, em contrapartida, Bill Clinton foi humilhado pela onda do modelo novo republicano de Newt Gingrich, e os republicanos assumiram o controle da Câmara de Deputados pela primeira vez em 40 anos (leia mais sobre a derrota democrata na eleição para o Senado em Massachusetts à pág. A11).

Depreende-se que Emanuel estivesse proclamando que a eleição de Obama tinha inaugurado o início de um realinhamento no estilo de um New Deal - a longa era conservadora chegara ao fim. Além disso, Emanuel argumentou que um momento de grande crise é também uma oportunidade. Os democratas deveriam caminhar ousadamente rumo a um futuro progressista com um ambicioso programa legislativo. "Nunca queremos que uma crise grave seja desperdiçada", disse ele em palestra alguns dias depois.

Tanto em seu prognóstico como em sua prescrição, Emanuel expressou opiniões amplamente compartilhadas. Após um ano de primeiro mandato de Obama, a validade de cada uma delas está sendo questionado. O surgimento de uma direita "tea party" (referência um evento radical na Revolução Americana contra a taxação britânica) raivosa, que preencheu o espaço deixado vago por uma liderança republicana ausente em Washington, tem tomado as pessoas de surpresa. Longe de ser um meteorito, o movimento anti-impostos ficou mais forte, conquistando a simpatia ou o apoio de até 40% dos eleitores americanos.

Alguns democratas, provavelmente com razão, veem o movimento "tea party" como um beco eleitoral sem saída para um Partido Republicano ainda mergulhado nas fases de raiva e negação da realidade na derrota. Mas, além de sua incipiente e por vezes ofensiva paranoia cultural", pode-se afirmar que os direitistas do "tea party" capturaram o ímpeto de uma ampla reação contra o crescente papel do governo e a relação entre uma generosamente subsidiada Wall Street e as autoridades governamentais em Washington.

"Um ano atrás, aceitei o argumento de Rahm Emanuel de que havia ocorrido uma mudança fundamental na política americana", diz Vin Weber, um importante aliado conservador de George W. Bush. "Agora, acho que o quadro está muito menos claro."

David Gergen, ex-conselheiro de presidentes tanto republicanos como democratas, concorda: "Uma das lições do primeiro ano de Obama é que os EUA estão sofrendo forte nervosismo e não estão dispostos a ver um forte movimento numa direção liberal".

A defesa que Emanuel fez de promover um "big bang" na agenda legislativa - espelhando, em menor grau, as grandes reformas de Roosevelt iniciadas em sua primeira passagem no cargo - também está, agora, sendo questionada. Em algum momento nas próximas semanas Obama pode se tornar o primeiro presidente em mais de 40 anos a conseguir promover uma reforma substancial no setor de saúde. A aprovação da lei que prevê o gasto de US$ 900 bilhões em dez anos será um momento histórico no qual o governo federal trará a maioria dos americanos sem plano de saúde para dentro do sistema.

No entanto, a perspectiva deixou o eleitorado perplexo e até um pouco hostil, segundo pesquisas. Com uma taxa de desemprego de dois dígitos, há preocupações mais prementes na cabeça dos eleitores. Após um ano de barganhas nada edificantes para aprovar o plano de saúde, Obama pretende dedicar a maior parte do seu segundo ano à questão do emprego. Algumas pessoas acreditam que deveria ter sido o contrário. "Acho que Obama subestimou como a economia iria dominar tudo", diz Gergen. "Teria sido melhor que ele invertesse os anos um e dois."

Em política externa, houve também uma gradual deflação pós-euforia de expectativas, principalmente sobre o quanto Obama pode conseguir, apoiado em sua popularidade, em todo o mundo. Ele também foi alvo de uma série de choques de realidade imprevistos. Durante a campanha eleitoral, quando Obama frequentemente citou uma frase do presidente John Kennedy - "Se você quer fazer a paz, não converse com seus amigos" -, Hillary Clinton zombou da promessa de seu rival de conversar com piores ditadores do mundo.

Com exceção de um rápido encontro com o venezuelano Hugo Chávez, Obama ainda não encontrou oportunidades críveis para dialogar com os regimes mais ameaçadores do mundo: Irã e, principalmente, Coreia do Norte. Em relação a esses dois países, a abordagem de Obama representa um grau de continuidade com a fase final do período de Bush no cargo: tentativas de abertura repetidamente rejeitadas.

No entanto, ele não pode ser acusado de não ter tentado. Obama não tem tido sorte com o Irã, por exemplo, onde Mahmoud Ahmadinejad aumentou seu controle sobre o poder desde a eleição disputada em junho passado. Críticos conservadores dizem que a crescente intransigência do Irã prova o fracasso da estratégia de engajamento de Obama. Mas a realidade é mais complexa.

"Estamos claramente caminhando, na questão do Irã, da fase de engajamento para uma fase de sanções", afirmou Strobe Talbott, presidente da Brookings Institution, de Washington. "Mas, tendo tentado um engajamento e tendo sido rechaçado pelo Irã, Obama está agora em posição bem mais forte para convencer a Rússia e a China das justificativas para as sanções. É completamente errado dizer que o engajamento fracassou."

No dia de Natal, Obama foi alvo de mais um choque de realidade indesejável, com a tentativa fracassada de um jovem nigeriano de explodir um avião que rumava para Detroit. Embora o presidente tenha sido aplaudido por sua reação calma, o episódio serviu como lembrete da facilidade com que ele poderia ser consumido por uma crise, se uma tentativa semelhante tiver êxito no futuro. "Detroit nos lembrou que Obama está à distância de uma bomba de uma Presidência fracassada", disse Dick Gephardt, ex-líder da maioria democrata na Câmara. "Pode não ser justo, mas essa é a realidade."

A abordagem de Obama frente à crise financeira também mostrou surpreendente continuidade com a de Bush, que conseguiu a aprovação dos primeiros US$ 350 bilhões em fundos de socorro a bancos e iniciou a ajuda em grande parte incondicional a Wall Street. O sentido de continuidade foi sublinhada pelo fato de Obama ter selecionado Tim Geithner para substituir Henry Paulson como secretário do Tesouro. Como presidente do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) de Nova York, Geithner tinha trabalhado em estreita colaboração com Paulson na época em que a crise ganhava corpo.

Apesar do efeito colateral abominável de, em Wall Street, enriquecer ainda mais os autores do colapso financeiro, a abordagem Paulson-Geithner conseguiu evitar o colapso econômico. Mas Obama tem recebido pouco crédito de um eleitorado que há muito tempo perdeu a confiança nas instituições públicas (um indicador que não se moveu desde que ele assumiu o cargo). Em vez disso, eleitores de direita e esquerda expressaram desencanto diante do crescente fosso entre Wall Street, novamente em vigoroso crescimento, e a economia real, onde a recuperação ainda é uma abstração.

Foi revelador o fato de que , numa pesquisa recente, a proporção de americanos que dizem que seu país está no "caminho errado" cresceu de 42% em abril passado, quando a recessão estava chegando ao fim, para 55% neste mês - após um semestre de aparente recuperação.

Sente-se um desalento generalizado. Na pesquisa, surpreendentes 31% dos entrevistados dizem que perderam seu emprego ou ficaram desempregados durante um longo período no ano passado. Quase metade disse acreditar que as ações do presidente Obama não conseguiram acabar com a recessão.

"Se você sair de Washington, verá como é chocante o número de pessoas que confundem o estímulo fiscal do presidente Obama [o pacote econômico de US$ 787 bilhões aprovado um ano atrás] com o socorro do Tarp [programa de alívio para ativos problemáticos] a Wall Street", diz Dean Baker, presidente do Centro para Pesquisa Política e Econômica, entidade liberal em Washington. "São duas coisas completamente diferentes. Mas as pessoas estão confusas e têm a impressão de que há um monte de dinheiro que está sendo bombeado de Washington, e elas não estão vendo a cor dele."

Mais uma vez, os eleitores de Obama estão dando muito pouco crédito a uma injeção fiscal que, sem dúvida, ajudou a atenuar o que poderia ter sido uma recessão ainda mais profunda. Mas percepção é o que move a política, e Obama revelou-se surpreendentemente inábil para vencer a batalha de relações públicas sobre a economia. Seu pacote bastante morno de reformas para Wall Street, que apenas elipticamente tratou do problema das instituições "grande demais para quebrar", reforçou essa desilusão.

"Bill Clinton disse certa vez que, em política, é melhor ser forte e errado do que fraco e certo", diz Andy Stern, chefe do Sindicato de Trabalhadores do Setor de Serviços. Stern, segundo registros da Casa Branca, visitou o presidente mais vezes do que qualquer outra pessoa de fora do governo. "Não chegarei ao ponto de dizer que o presidente Obama está agindo de modo fraco e errado em relação à re-regulamentação de Wall Street. Mas temos uma oportunidade histórica para pressionar por mais reformas de longo alcance. E essa janela está se fechando."

Quer se trate de adversários recalcitrantes - de republicanos obstrucionistas no plano doméstico a rivais e inimigos ferrenhos dos EUA no exterior - ou de tendências recalcitrantes (especialmente na economia e na crescente dívida pública), o primeiro ano de Obama no cargo tem sido uma aula de cautela sobre os limites do poder presidencial.

Também serviu como lembrete de que não devemos levar muito ao pé da letra as promessas de campanha. Obama chegou ao poder prometendo mudanças, especialmente no modo como a política é conduzida em Washington. Ele também prometeu uma agenda diplomática revitalizadora. Ambas as promessas bateram em obstáculos e restrições que nos são familiares: a primeira, nos limites do poder de um presidente no terreno doméstico; e a segunda, na realidade do declínio da influência americana no mundo.

Seja lá o que possa ser dito sobre o desempenho predominantemente competente de Obama, pouca dúvida existe sobre o fato de ele não ter conseguido resgatar o entusiasmo que gerou na campanha eleitoral. Na verdade, Obama conduziu os Estados Unidos por alguns rumos aparentemente familiares. A estratégia de enviar mais 30 mil soldados ao Afeganistão pode ser muito diferente das ações de Bush no Iraque. Mas, assim como nos casos do Tarp e do pacote de estímulo, as duas guerras já começaram a perder nitidez na mente de muitas pessoas.

Apesar de ainda estarmos muito distantes, é provável que Obama conquiste um segundo mandato em 2012. Os republicanos são uma marca seriamente enfraquecida, e o presidente promete um foco implacável sobre a economia entre agora e o momento da eleição. Mas será um Barack Obama mais endurecido pelas batalhas e mais realista que irá aos palanques da próxima vez: um presidente que terá de fazer campanha com base em seu desempenho, mais do que em sua capacidade de inspirar.

"Não se trata tanto de "Sim, nós podemos" ("Yes, we can", o slogan da campanha eleitoral de Obama), porém mais de "estamos fazendo tudo o que podemos", diz um influente liberal defensor de Obama. "E acho que, na maioria das frentes, ele está fazendo tudo o que pode." (Tradução de Sergio Blum)