Título: A reconstrução do Haiti
Autor: Nwanze , Kanayo F.
Fonte: Valor Econômico, 02/02/2010, Opinião, p. A11

O Haiti estava em maus lençóis mesmo antes do terremoto. O rápido crescimento populacional, associado à turbulência política e social, contribuiu para torná-lo a nação mais pobre do Hemisfério Ocidental. Neste momento, os esforços internacionais de ajuda humanitária estão focados nas áreas urbanas, que mais sofreram com o terremoto. Mas, quando a reconstrução começar, as áreas rurais não poderão ser negligenciadas.

Na verdade, muitos daqueles que perderam suas casas e postos de trabalho em Port-au-Prince e outras cidades haitianas provavelmente retornarão às comunidades rurais onde têm famílias. Isso exercerá pressão sobre a economia rural que já sofre as consequências de parcos recursos.

A agricultura desempenha um papel vital na economia do Haiti, mas o país ainda não produz comida suficiente para alimentar seu povo. Cerca de 60% dos haitianos precisam de comida e até 80% do arroz que comem é importado. Um desenvolvimento agrícola sustentável é essencial para melhorar as perspectivas econômicas e de segurança alimentar do país no longo prazo.

O Fundo Internacional para Desenvolvimento Agrícola (Fida) testemunhou como investimentos na agricultura podem ajudar as pessoas a se recuperarem de desastres naturais. Nossa experiência nos países em desenvolvimento nos diz que os investimentos na agricultura podem ser duas vezes mais eficazes na redução da pobreza do que investimentos semelhantes em outros setores.

Menos de dois anos atrás, o Haiti foi devastado por um furacão que causou cerca de US$ 220 milhões em danos às culturas agrícolas, num momento em que a população estava também em dificuldades para se alimentar por causa dos preços elevados dos alimentos no mundo. O Fida financiou um programa visando dar um pontapé inicial à produção de alimentos. O plantio de inverno 2008 rendeu US$ 5 milhões em culturas de feijão, ajudando a melhorar a segurança alimentar e a renda dos agricultores pobres.

Embora a crise no Haiti seja um grande obstáculo ao esforço para conseguir um aumento na produção de alimentos, isso não deveria ser um "sinal de Pare" no caminho do desenvolvimento a longo prazo. O desafio é assegurar que esforços anteriores não sejam perdidos e que incluam a retomada de um impulso em direção a sistemas sustentáveis de produção agrícola para o Haiti.

Um grupo hoje erguendo-se dos escombros é a Fonkoze, uma organização de microcrédito que opera predominantemente na zona rural do país. Com a assistência do Mecanismo de Financiamento para Remessas de Fundos de multidoadores do Fida, o Fonkoze adquiriu telefones via satélite e geradores a diesel em 2007, e começou a oferecer serviços de remessa de fundos em áreas rurais onde a infraestrutura básica é muitas vezes precária ou inexistente.

Somente hoje o verdadeiro valor daqueles investimentos está vindo à luz. O Fonkoze voltara apenas alguns dias após o terremoto. As remessas de fundos transferidas por ele são gratuitas, proporcionando às famílias beneficiárias no Haiti recursos vitais para satisfazer necessidades de curto prazo, ao mesmo tempo que incentiva o desenvolvimento de longo prazo.

Mais de US$ 1,9 bilhão foi enviado para o Haiti em 2008 por essas remessas, mais do que a ajuda oficial ao desenvolvimento e do que o investimento direto estrangeiro combinados, e mais da metade desses fundos foi diretamente para as mãos de famílias em áreas rurais.

Grande parte do investimento de capital necessário poderá permitir que pequenos agricultores forneçam ao setor privado uma oferta sustentável de produção agrícola de elevada qualidade.

Na verdade , os pequenos agricultores são muitas vezes produtores extremamente eficientes por hectare, e podem contribuir para o crescimento econômico e a segurança alimentar de um país. Por exemplo, o Vietnã transformou-se de país com déficit alimentar em segundo maior exportador de arroz do mundo por meio do desenvolvimento de seu setor de agricultura familiar. Como resultado, a pobreza caiu de 58% em 1979 para abaixo de 15% hoje.

No Haiti e em países em desenvolvimento ao redor do mundo, os pequenos agricultores podem contribuir para a segurança alimentar e o crescimento econômico exatamente como fizeram no Vietnã. Mas não podem fazê-lo sem acesso seguro à terra e à água, bem como serviços financeiros rurais para arcar com os custos de sementes, ferramentas e fertilizantes. Eles também precisam de estradas e transporte para levar seus produtos ao mercado e tecnologia para receber as mais recentes informações de mercado sobre preços. Acima de tudo, eles precisam de um comprometimento de longo prazo de seus governos , da comunidade internacional e do setor privado para com a agricultura, apoiados por maior investimento.

A capacidade produtiva dos pequenos agricultores haitianos será fundamental para ajudar o país a superar essa crise e para evitar carências alimentares graves. É por isso que o Haiti precisa , mais que nunca , do setor privado para ajudar a reconstruir tanto o país como os meios de subsistência da população rural pobre.

Com efeito, o setor privado tem um papel crucial a desempenhar no desenvolvimento rural, não só no Haiti, mas em todo o mundo em desenvolvimento.

Organizações como o Fida podem ajudar a interligar o setor privado e os pequenos agricultores. Podemos apoiar investimentos que ampliem o potencial produtivo do setor familiar no mundo em desenvolvimento, ajudando os investidores a reduzir seus riscos e ajudando os pequenos agricultores a acessar novos financiamentos e mercados por meio de parcerias com o setor privado.

Kanayo F. Nwanze é presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida), uma instituição financeira internacional e agência especializada das Nações Unidas.