Título: Independência e competência das agências e do Cade
Autor: Schmidt , Cristiane A. J.
Fonte: Valor Econômico, 15/12/2009, Opinião, p. A14

A Advocacia geral da União (AGU) concluiu seu segundo parecer reafirmando a posição constante no primeiro de que os bancos não devem se submeter ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) e à Lei de Defesa da Concorrência 8.884/94, mas apenas ao Banco Central (BC) e à Lei Bancária 4.595/64. O Cade tem interpretação diferente. Para ele, os dois órgãos devem participar da análise: o BC na questão dos riscos prudencial e sistêmico e o Cade no enfoque concorrencial.

O tema ganhou importância com as grandes fusões recentes, as do Itaú-Unibanco, Santander-Real e BB-Nossa Caixa, mas sua origem remonta à fusão BCN-Bradesco. Na época, esses dois bancos impetraram mandado de segurança para não apresentarem o caso ao Cade e o juiz acatou-os. O Cade recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que, assim, concluiu: a) atos de concentração econômica de instituições financeiras devem ser julgados pelo BC e pelo Cade; e b) os pareceres da AGU, mesmo aprovados pelo Presidente da República, não são de observância obrigatória pelo Cade. O Poder Executivo, assim, não pode anular ou limitar-se às decisões do Conselho.

As requerentes recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a ministra Eliana Calmon, relatora do caso, votou pela competência exclusiva do BC. Também sustentou que o Presidente da República teria o poder de supervisão sobre toda a Administração Pública Federal, vinculando seus órgãos independentes. Recentemente o ministro Castro Meira votou como o TRF1, mas faltam os demais votos para a conclusão.

Já a Procuradoria-Geral Federal, órgão vinculado à AGU, publicou em 20/02/2009 a Portaria 164, que transfere aos procuradores da AGU a função de defender as causas judiciais dos órgãos reguladores, incluindo Cade e CVM, onde há procuradores especialistas em seus temas. Há, assim, duas áreas de conflito: a primeira concerne à competência do Cade para apreciar fusões bancárias e, a segunda, à intervenção do Executivo nas decisões das autarquias, com a AGU.

Quatro fatos, ao menos, devem ser considerados. O primeiro refere-se às funções dos órgãos. O Conselho é a autoridade judicante antitruste brasileira que, com a SEAE e a SDE, formam o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Ao SBDC compete analisar e julgar os atos de concentração econômica. O BC, por sua vez, é o órgão regulador do Sistema Financeiro Nacional (SFN), responsável pela regulação prudencial e sistêmica, e a autoridade monetária do país.

O segundo fato diz respeito ao momento histórico em que foi formulada a Lei Bancária. Na década de 60, na agenda do Brasil não constava o tema antitruste. Em 1964, início do regime militar, no Brasil de Castelo Branco e do Plano PAEG, almejava-se, dentre outros temas, institucionalizar o sistema financeiro com a criação do BC, BNH, FGTS etc.. O tema antitruste só viria à discussão 30 anos depois.

Como terceiro fato, hoje, as agências reguladoras participam do processo decisório do Cade. Se o órgão regulador aprova um ato de concentração, encaminha seu parecer ao Conselho, para que este decida sob a perspectiva concorrencial. Se rejeitado, nem é preciso enviar ao Cade porque há harmonia entre o conselho e os órgãos reguladores. Por que não proceder assim com o BC? Não há motivo para tratar o setor financeiro diferente dos demais, especialmente no Brasil pós-crise, em que mostrou solidez. Além disso, se por um lado o grau de concentração aumentou no setor, por outro, a falta de competição é apontada como causa dos altos spreads. Sem contar que a parceria entre o BC e o SBDC na indústria de cartões de crédito mostrou que essa cooperação funciona e ajuda o consumidor. Como, então, manter o Cade à margem de fusões bancárias?

Situação preocupante é se o BC, por perceber risco, decidir afastar a concorrência e o Conselho discordar, mas a história recente revela ser baixo este risco. Em 1995 implantou-se o Proer, programa que, mesmo diminuindo a concorrência bancária, foi implementado para garantir a higidez do sistema. Esses três fatos mostram, portanto, não haver paradoxo entre as Leis antitruste e bancária, que podem conviver em harmonia. Criadas em momentos históricos e propósitos distintos, a primeira é específica sobre o tema concentração econômica (função do Cade) e a segunda apresenta o tema de forma geral.

O quarto fato concerne à governança do governo brasileiro. Trocar decisões de Estado pelas de governo, como sugerem a Portaria 164 e o voto da ministra Calmon, pode alterar o resultado dos processos que tramitam no Judiciário, trazer problemas de inconsistência intertemporal entre os governos e aumentar o risco do país.

Que fazer quando decisões "técnicas e de Estado", aparentemente impopulares, forem benéficas a longo prazo? O Executivo não se motivaria a alterar aquela decisão por outra "política e de governo"? O governo tem interesses políticos, tomando decisões visando resolver seus problemas de curto prazo (eleitores). O Estado, por outro lado, preocupa-se com os efeitos de longo prazo. Se decisões de Estado passarem a ser de governo, o Estado poderá ser capturado por interesses privados e de próprio caráter partidário. Se desde 1990 as agências reguladoras vêm ganhando relevância na minimização dos efeitos das imperfeições de mercado, alterar essas regras é preocupante, por enfraquecer a autonomia dessas autarquias.

Criar insegurança jurídico-institucional é um problema também econômico. Regras, normas e leis alteraram os incentivos dos agentes econômicos ao longo do tempo: sua forma de agir e reagir; seu modo de otimizar. É preciso cuidado ao criá-las ou alterá-las. Exemplo é a atual questão do IOF. Primeiro o governo o impõe (aos investimentos estrangeiros) e, agora, deve suspendê-lo à abertura de capital de empresas, para não perder US$ 10 bilhões.

Ida e vinda de canetadas criam incertezas. Há que planejar antes de experimentar, pois o Brasil não é um laboratório. Qualquer empresa privada planeja antes de agir. O governo, com respeito às suas políticas, deve fazer o mesmo. Não só porque cada má decisão afeta o contribuinte de alguma forma, mas também porque o país deseja retomar o crescimento mais aceleradamente. Se o investidor já se depara com impostos e burocracia elevados, financiamento caro e infraestrutura inadequada, introduzir mais risco é ruim.

O argumento de que o Brasil é a bola da vez é reconfortante, mas não deveria ser. A agenda de reformas microeconômicas está capenga e, se fosse ajustada, o país poderia desfrutar de melhor posição. É importante trazer ao debate, agora, possíveis canetadas que venham a dificultar ainda mais o desejo de crescer. Alterar funções de agências e introduzir interferência do Executivo nas autarquias não são temas sem impacto a longo prazo. Mal comparando, é como aprovar uma lei que obriga os caixas eletrônicos de bancos drive-in a terem codificação em braile. Faz sentido? Qual é o custo-benefício dessa medida?

Cristiane Alkmin Junqueira Schmidt é doutora em Economia e economista do IBRE/FGV.