Título: Livro revela bastidores de julgamentos do Cade
Autor: Basile , Juliano
Fonte: Valor Econômico, 21/12/2009, Brasil, p. A6
Ao julgar grandes fusões e aquisições nos últimos 15 anos, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) enfrentou todo o tipo de pressões - ameaças de CPI, telefonemas de ministros de Estado para conselheiros e até negativas de empresas em cumprir as determinações. Avaliações feitas por mais de 20 ex-conselheiros mostram que o órgão antitruste conseguiu impor-se contra as pressões do setor privado e garantiu o cumprimento da maioria das decisões em casos polêmicos, como a criação da AmBev, a compra da Kolynos pela Colgate e o julgamento de fusões bancárias.
Estas análises estão no livro "Conversando com o Cade" (Editora Singular, 288 páginas), uma sucessão de entrevistas com os principais conselheiros entre os anos 90 e a última composição plenária. O autor é o advogado Pedro Dutra, que atuou diretamente em vários dos casos mais importantes da história antitruste do Brasil. As respostas dos conselheiros resultaram em revelações sobre os bastidores dos julgamentos das principais fusões ocorridas no Brasil no período que vai do início da abertura da economia, na primeira metade dos anos 90, até os dias atuais.
Para Dutra, o Cade ainda sofre resistências dentro do Executivo e do Legislativo, mas a maior delas é a falta de estrutura mínima para julgar fusões, aquisições e cartéis. Para ele, o órgão antitruste ainda está em fase de consolidação. "A maior dificuldade é a inexistência de um quadro de pessoal fixo e com remuneração decente. Esse é o último bolsão de resistência a ser vencido, tanto junto ao Executivo quanto ao Legislativo", afirma.
Na avaliação de Dutra, a transparência é a melhor arma do Cade para evitar pressões. "Praticamente todos os depoimentos enfatizam esse ponto, qualificando-o como essencial à atividade do Cade - e de todo órgão de intervenção do Estado na economia", explica o autor. "O conselho se reúne a portas abertas, qualquer um do povo é admitido sem crachá, sem requerimentos, sem pré-qualificações. E a imprensa está sempre presente, essa outra garantia essencial à transparência."
Um dos entrevistados por Dutra foi o ex-conselheiro Renault de Freitas Castro, que falou sobre fato ocorrido na época do julgamento da joint venture entre as cervejarias Brahma e a Miller. "Antes da apresentação do meu voto, um influente ministro de Estado ligou, num domingo à tarde, para a minha residência, para me pedir um tratamento carinhoso, especial, para o caso", afirmou Castro. Para ele, o telefonema foi uma "situação absolutamente inusitada".
"Era algo que a empresa não havia pedido em momento algum, sequer insinuado. Eu respondi ao ministro que daria ao caso a mesma atenção que dispensava a todos os casos e, assim, o assunto morreu", disse Castro. Ao fim, o Cade impôs, em 1997, condições à parceria entre as cervejarias, como a prestação de serviços para concorrentes, a um custo que chegaria a US$ 50 milhões, e o negócio acabou desfeito. Após o episódio, Castro não quis mais permanecer no Cade. "Senti que a liberdade do conselheiro era muito ameaçada por conveniências do governo, conveniências políticas de forma geral", afirmou o ex-conselheiro.
As pressões sobre o Cade tiveram início a partir do veto à Gerdau, em 1995. A empresa havia adquirido na Alemanha uma holding, que controlava a Siderúrgica Pains, em Minas Gerais. O órgão antitruste mandou a Gerdau vender a Pains. A empresa pediu reconsideração da decisão, mas o veto foi mantido. Então, ocorreu algo inédito na história do Cade: a Gerdau recorreu diretamente ao ministro da Justiça, Nelson Jobim, para que ele revisse a decisão, segundo relatos obtidos por Dutra.
"Ficamos perplexos, pois jamais imaginaríamos que o Cade fosse solapado no âmbito do próprio Ministério da Justiça", lembrou a conselheira Neide Mallard. "Nós, conselheiros, nos reunimos e chegamos à conclusão de que não iríamos enviar o processo ao ministro, mas sim ao Ministério Público para que executasse a decisão." Segundo o presidente do Cade na época, Ruy Coutinho, o episódio causou "um mal estar político tremendo". "Jorge Gerdau foi ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que entrou em contato comigo para saber o que havia acontecido."
Todos os conselheiros que votaram contra a Gerdau não foram reconduzidos para novos mandatos, que duram apenas dois anos. Após a troca de todos os conselheiros, o órgão antitruste, sob nova composição, fez valer a venda da Pains, mas para uma compradora de pouca expressão, a Cabomat.
Depois do caso Gerdau, o Cade passou a ser visto por setores empresariais como um empecilho ao movimento de internacionalização da economia. Na segunda metade dos anos 90, grandes companhias internacionais buscaram o Brasil para fazer aquisições de empresas locais. Todos esses negócios foram julgados pelo Cade, que passou a impor condições para que fossem realizados.
Aconteciam, então, verdadeiras batalhas de Davi contra Golias. O Cade, um órgão sem sede, funcionando no corredor de um anexo no Ministério da Justiça e com fios pendurados no teto, com orçamento pífio, inferior a R$ 10 milhões, como descreve o ex-conselheiro Marcelo Calliari, julgava operações de centenas de milhões de dólares de multinacionais.
Um dos maiores testes foi a compra da Kolynos pela Colgate. "No caso Kolynos, havia um desafio institucional e se nós decidíssemos erradamente, seria o fim do Cade", recordou a relatora do processo, Lúcia Helena Salgado. Segundo ela, houve, desde o veto à Gerdau, "forte pressão privada e pública, dentro do governo, movida pelos interesses específicos contrariados com o papel mais atuante do Cade". Na época, Mario Henrique Simonsen escreveu um artigo intitulado "O Cade atrapalha".
Lúcia conta que se reuniu com o ministro Jobim no dia da decisão e ele disse que aquele caso era "o Rubicão que o Cade tinha de atravessar". Jobim gostou da solução proposta por ela de suspender a marca Kolynos por quatro anos, porque isso trouxe a operação "para dentro da legalidade da defesa da concorrência". Mas essa solução teve um preço. Como o negócio foi aprovado sob condições, a busca de saídas intermediárias acabou se tornando comum em grandes fusões. Foi neste cenário que o Cade julgou a criação da AmBev.
O caso AmBev chegou ao Cade com um recado diferente dos demais. "Os executivos da Brahma e da Antarctica foram ao presidente Fernando Henrique Cardoso dizer que estavam constituindo uma multinacional verde-amarela, e, após a reunião, um dos representantes da empresa ligou para o presidente do Cade e para mim para nos informar da operação. Estava longe de ser um caso trivial", recorda Lúcia.
O órgão procurou se afirmar ao determinar o congelamento da operação, logo após a notificação formal do negócio. "Vi pela televisão a notícia da compra da Antarctica pela Brahma, telefonei ao meu colega de conselho João Bosco Leopoldino e disse: "João, temos que tomar uma providência rápida, porque esse caso já começa com muita pressão na mídia". Ele disse que ia pensar e, logo depois, me ligou e disse que o Cade poderia impor uma medida cautelar para suspender os efeitos do ato até a decisão final", relatou o conselheiro Ruy Santacruz. Foi assim que, em julho de 1999, o Cade suspendeu uma fusão antes do julgamento final pela primeira vez em sua história. Atualmente, o órgão faz acordos com as companhias para fixar as cláusulas dessas suspensões.
Segundo Santacruz, a relatora do caso AmBev, Hebe Romano, "tentava achar soluções à maneira do caso Colgate-Kolynos", como suspender marcas ou vender alguns ativos. "Mas o problema ali não era a marca", disse Santacruz. Ao fim, o Cade mandou a AmBev vender a marca e os ativos da Bavária. Para Santacruz, isso indicou aos empresários que o órgão antitruste sempre poderia encontrar uma saída para aprovar fusões de grande porte, sem causar maiores transtornos às companhias.
"Penso que o Cade, aprovando o caso AmBev, perdeu a grande oportunidade de sinalizar ao setor empresarial o risco de se fazer aquisições sem uma precisa avaliação dos riscos concorrenciais. A meu ver, a Nestlé só se animou a comprar a Garoto por conta dessa sinalização do Cade no caso AmBev", afirmou Santacruz.
De fato, com a aprovação da AmBev, grandes fusões, tão polêmicas quanto aquela, foram notificadas para julgamento sempre na esperança de que o Cade encontrasse uma saída de consenso. E as pressões tornaram-se extremas após o veto à compra da Garoto pela Nestlé, em 2004.
"A sessão que julgou o caso Nestlé-Garoto foi assustadora", contou o conselheiro Celso Campilongo. "Procurou-se criar um clima de constrangimento ostensivo, quase de pressão física sobre o plenário." Segundo Campilongo, cinco minutos antes de o julgamento começar, "entrou no plenário do Cade um batalhão". "Eram uns oito, dez parlamentares, senadores e deputados federais, a bancada do Espírito Santo e mais algum reforço, e ocuparam a primeira fila de cadeiras do auditório. Isso depois de inúmeras declarações dos parlamentares à imprensa, todos os dias, pressionando o Cade, sugerindo que o seu plenário aprovasse a aquisição da Garoto pela Nestlé."
O relator do caso Nestlé, Thompson Andrade, e o conselheiro Roberto Pfeiffer também se recordam da pressão. "Inúmeros políticos procuraram o Cade para pedir a revisão da decisão", disse Andrade. "Não vejo nada de negativo ou nocivo que o Senado se mobilize, que venha a discutir a atuação do Cade. Mas, pareceu-me excessivo ameaçar o Cade com uma Comissão Parlamentar de Inquérito, com a edição de decretos legislativos", afirmou Pfeiffer, referindo-se à possibilidade de o Congresso derrubar o veto ao negócio por meio de um decreto.
No caso das fusões bancárias, o Cade bateu de frente com o Banco Central. O BC via o risco de correntistas sacarem dinheiro dos bancos, caso as fusões no sistema financeiro ficassem sob a dependência do aval do Cade. Para evitar esse risco, a Advocacia-Geral da União (AGU) concluiu um parecer retirando do órgão antitruste a competência para analisar negócios entre bancos. Assim que o parecer foi assinado por FHC, em abril de 2001, o então presidente do Cade, João Grandino Rodas, passou a adotá-lo. Mas, os conselheiros se rebelaram e continuaram a votar essas fusões e a multar os bancos que não submetiam os casos a julgamento do conselho.
Campilongo foi o primeiro a protestar junto a Rodas. "Eu disse que, se isso vincular o Cade, acabou a nossa autonomia e a defesa da concorrência no Brasil, porque vão inventar um parecer da AGU sempre às vésperas de qualquer caso complexo que formos julgar. Hoje, é banco. Amanhã, será laranja. Depois, chocolate, automóvel. Nós não faremos mais nada."
Campilongo também se recorda de discutir o caso com o presidente do BC, Armínio Fraga. "Ele brincava conosco dizendo: "Eu não consigo segurar a tigrada, a tigrada é toda contrária a isso, mas eu acho que eles estão errados". "Tigrada" eram os demais diretores do BC. Enquanto presidente do BC, Armínio jamais assumiu essa posição para não entrar em conflito com a diretoria, mas, depois, passou a admiti-la.
No livro, também há relatos de casos em que conselheiros foram chamados por ministros de Estado, mas não sofreram pressões para decidir de determinada forma. Calliari, um dos conselheiros que participaram da primeira condenação por cartel no Brasil, em 1999, envolvendo a CSN, a Usiminas e a Cosipa, disse que, dias antes do julgamento, esteve com o então ministro da Fazenda Pedro Malan. "Falamos sobre o funcionamento e a importância do Cade, e a conversa moveu-se para aquele caso, que envolvia três grandes siderúrgicas", descreveu Calliari. A acusação de cartel teve como base uma reunião entre as empresas para discutir preços no Ministério da Fazenda e Malan comentou o episódio.
"Em nenhum momento o ministro sugeriu qual deveria ser a decisão, apenas fez uma observação de que aquele tipo de reunião, dos empresários com o Ministério da Fazenda, era, até pouco tempo antes, comum." Para Calliari, o ministro fez uma "colocação muito elegante, muito cuidadosa". Ao final, o Cade multou as empresas. Hoje, Calliari preside o Instituto Brasileiro de Estudo das Relações de Concorrência e Consumo (Ibrac), órgão que reúne advogados e economistas que atuam no Cade.
Para muitos conselheiros, a resistência às pressões é a melhor forma de garantir a efetividade da política antitruste. "Hoje, acredito que uma das principais funções do Cade é manter-se independente de qualquer interferência, para que haja uma efetiva defesa da livre concorrência", afirmou Cleveland Teixeira, um dos conselheiros mais atuantes entre 2002 e 2004, e que não assumiu um segundo mandato após votar contra a compra da Garoto pela Nestlé. "O caso Gerdau só não acabou com o Cade, porque o colegiado naquela altura foi muito firme em sua decisão e na defesa dela", lembrou Lúcia.
Elizabeth Farina, que presidiu o Cade entre 2004 e 2008, utilizou uma estratégia eficiente para evitar que as pressões interferissem nas decisões. Farina recebia todos os políticos que solicitavam audiência para discutir casos específicos. Porém, nesses encontros, explicava que o conselho tem sete integrantes, que votam em público, são aprovados pelo Senado, com mandato para aplicar a Lei de Defesa da Concorrência. Além disso, os encontros eram registrados numa agenda pública, divulgada na internet, e os julgamentos passaram a ser transmitidos na rede.
"Eu recebia ligações, às vezes visitas, de parlamentares. Mas nunca recebi um pedido, comentário, qualquer tipo de interferência do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, ou do ministro Tarso Genro, a cuja pasta o Cade está administrativamente vinculado", contou Elizabeth.
Mauro Grinberg, que foi conselheiro nos anos 80, acredita que as pressões sobre o Cade estão se transferindo do Executivo e do Legislativo para o Judiciário. Para ele, as respostas que o órgão antitruste deu às grandes fusões, a partir do caso Gerdau, mostraram a sua autoridade. "O Cade quase foi fechado naquela ocasião, porque a reação de determinados setores foi violenta. Hoje, a reação seria transferida para o Poder Judiciário, que é o foro competente para contestar as decisões do Cade."
Luis Fernando Schuartz, que foi conselheiro até novembro de 2007 e morreu precocemente de infarto, há um mês, aos 43 anos, chegou a uma conclusão parecida ao dizer para Dutra que o Cade vai passar por um processo de judicialização de suas decisões. Para ele, o órgão precisa de uma forte estrutura administrativa para ficar "menos vulnerável à vontade política dos governantes de plantão" e enfrentar as contestações judiciais às suas decisões. "Quando você tem o poder de decidir, afetando direitos e interesses privados, e o dever de fazê-lo atendendo ao interesse público, você percebe como é tênue a linha que separa o uso legítimo desse poder do seu abuso", disse Schuartz, num dos últimos depoimentos de sua vida.