Título: Energia elétrica no Brasil nos próximos 20 anos
Autor: Leite , Antonio Dias
Fonte: Valor Econômico, 21/12/2009, Opinião, p. A18

País entrou na contramão de sua própria história ao construir mais termelétricas a combustível fóssil

Recentemente o Brasil acabou entrando na contramão da sua própria história, com o aumento da participação relativa das termelétricas a combustíveis fósseis na capacidade instalada no país. É impressionante a facilidade com que vão sendo oferecidas nos leilões de energia elétrica, e são licenciadas, usinas a gás natural e a carvão mineral, e até mesmo as antes inimagináveis usinas a óleo combustível.

Concomitantemente, o licenciamento de projetos hidrelétricos sofre tropeços, decorrentes de obstáculos a eles interpostos com variadas motivações.

Não existe explicação simples para que isso venha acontecendo e nem seria, em principio, necessário ou desejável, embora haja lugar para térmicas com a função de substituir a energia proveniente das usinas hidrelétricas nos períodos de seca.

Olhando para o futuro e diante das incertezas que nos cercam, é prudente considerar apenas o que possa ocorrer no horizonte de 20 anos, prazo que está servindo, aliás, como base da discussão de metas globais de contenção do processo climático. Não obstante o progresso tecnológico e as mudanças na ideologia do desenvolvimento que vêm ocorrendo no mundo, persistirá nesse prazo contradição intrínseca entre sustentar ou acelerar o crescimento econômico e reduzir ou conter danos ambientais dos investimentos em infraestrutura. Vão surgindo, entretanto, tecnologias que buscam conciliar esses dois objetivos.

No Brasil, essa transição se dá em confuso quadro institucional do setor elétrico, decorrente de duas reformas sucessivas e incompletas. São muitos os órgãos de governo com funções específicas que em parte se superpuseram, em um país com exagerada confiança na legislação e que atribui menor valor à eficácia de sua aplicação. Há leis contraditórias entre si e algumas não se cumprem. A própria Constituição cria confusão ao tratar da competência legislativa comum e concorrente entre União, Estados e Municípios, em questões relativas ao ambiente, e quando trata da independência funcional do Ministério Público, deixando campo aberto para interpretações individuais dos procuradores. Para complicar o entendimento entraram em cena empresas novatas no ramo da energia elétrica, para muitas das quais predominam interesses locais e de curto prazo.

No caso específico dos empreendimentos na Amazônia, onde se encontram os maiores potenciais hidrelétricos ainda por aproveitar, os obstáculos, reais ou artificialmente criados, agravam as dificuldades logísticas das construções. Apresentam-se aí questões relacionadas à cobertura florestal e à preservação da biodiversidade na área dos reservatórios das hidrelétricas a construir, bem como ao deslocamento de grupos populacionais nela localizados, como os silvícolas, sujeitos a dispositivos constitucionais particularizados.

Nesse cenário, é fundamental ter presente que qualquer instalação seja ela no setor energético ou não, envolve danos e interferências; e que é necessário identificar, dentre as soluções possíveis, a que ofereça melhor relação benefícios/agressões ao ambiente e ao entorno social. Diante da constatação inequívoca do agravamento do processo de mudança climática, assume importância a análise da contribuição de cada empreendimento para a emissão de gases de efeito estufa.

No Brasil, no horizonte dos próximos 20 anos, será indispensável paciente e persistente campanha pela eficiência energética, a fim de conter o ritmo de crescimento da demanda por energia elétrica via redução do desperdício. Lembre-se que as medidas de redução do consumo, sem prejuízo dos objetivos, obtiveram significativa aceitação pela sociedade durante o racionamento de 2001.

Complementarmente, caberia acelerar o aproveitamento de energia solar para aquecimento de água domiciliar, área em que o país detém tecnologia comprovada, em estágio comercial. A conservação requer, muitas vezes, menor investimento que o aumento de capacidade de geração, embora a sua aplicação dê intenso trabalho promocional e administrativo.

Quanto ao aumento da capacidade de geração, em 20 anos seria possível, também, com bom-senso e engenharia competente, realizar o aproveitamento ambientalmente aceitável do potencial hidrelétrico da Amazônia. A energia eólica já é viável em algumas regiões e é objeto de leilão específico. Por fim, ainda há espaço para a expansão da geração térmica complementar, anexa ao agronegócio da cana-de-açúcar, competitiva e não poluente, cuja contribuição coincide com o período seco anual.

No intervalo de tempo requerido para a consolidação técnica e econômica das energias novas, parece indispensável que a hidreletricidade continue a ser o esteio do sistema, embora a sua participação vá, progressivamente, mudar. Do tradicional e original sistema hidrotérmico brasileiro, baseado em reservatórios de regularização plurianual, caminharemos, em função das restrições à área ocupada pelos reservatórios a construir, para uma operação anual. Crescerá o papel de usinas que operem na base do sistema, como Itaipu e Angra, o que poderá ser alcançado com novas nucleares, algumas já programadas para entrar em operação até 2017.

Mas, antes de atualizar programas de ação, torna-se urgente rever os critérios de contratação de capacidade geradora, pois que aqueles em vigor estão contribuindo para que sigamos em direção oposta à desejável. Essa revisão exigirá grande esforço de entendimento entre os entes públicos e privados envolvidos na condução do processo, visando corrigir incongruências que têm sido objeto de competentes análises. É preciso ter presente, todavia, que a sociedade está cansada e descrente de reformas e que qualquer iniciativa há de evitar a construção de terceiro modelo institucional, a superpor-se na pilha que se formou desde 1995.