Título: Concorrência no transporte rodoviário de passageiros :: Eduardo Guimarães
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/02/2010, Opinião, p. A10

A Agência Nacional de Transportes Terrestres deverá realizar até março de 2011 licitações de outorgas para prestação de serviços de transporte rodoviário interestadual de passageiros (Trip). Essas outorgas substituirão as permissões relativas a quase 1.900 linhas cujos prazos expiraram em outubro de 2008. Sem dúvida uma tarefa difícil: a Agência precisará estimar a demanda dos cerca de 1.700 mercados atendidos por essas linhas. E uma tarefa frustrante pois reafirmará uma norma legal que impede que se instale a concorrência nesses mercados, em benefício do consumidor.

A Lei 10.233/01, que disciplina os transportes aquaviário e terrestre, estipula que o transporte rodoviário coletivo regular de passageiros será prestado sob a forma de permissão definida em licitação pública, seguindo o artigo 175, da Constituição Federal, que diz incumbir ao Poder Público a prestação de serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação.

Mercados potencialmente competitivos, onde não existem barreiras significativas à entrada de novos concorrentes, prescindem de ação regulatória específica - é o caso do Trip. Contudo, ao vincular qualquer serviço público à licitação pública em tais mercados, a lei impede a livre entrada de novos concorrentes, tornando não competitivos mercados potencialmente competitivos. Além disso, impõe a criação de um aparato regulatório em parte prescindível. Esse não era certamente o propósito do artigo 175 da Constituição, que busca moralizar a outorga a terceiro de serviços públicos, impedindo - em casos em que existem restrições à entrada, como no monopólio natural - que o acesso privilegiado resulte do arbítrio exclusivo do poder Executivo.

O efeito negativo desse regime legal é particularmente significativo no caso do Trip, no qual o objeto da permissão (e, portanto, da licitação) é a ligação viária caracterizada por um par origem-destino. Ora, é impossível a uma agência reguladora identificar e responder, com a necessária agilidade, às mudanças das centenas de mercados de Trip, o que dá origem a um sistema regulatório rígido, incapaz de assegurar a concorrência e consequentemente uma alocação eficiente de investimentos.

A experiência de regulação do transporte aéreo de passageiros (TAP) no Brasil mostra como os problemas associados à regulação vigente no mercado de Trip podem ser superados. Os contratos de concessão de serviços de TAP sempre permitiram mudanças do plano básico de linhas e o ingresso em novos mercados. Em 2005, novo dispositivo legal assegurou às empresas concessionárias a exploração de quaisquer linhas aéreas mediante prévio registro na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), observada exclusivamente a capacidade operacional de cada aeroporto e as normas regulamentares de prestação de serviço adequado.

A incorporação dessa diretriz às normas que regulam o Trip contribuiria para minorar o engessamento regulatório do sistema de transportes. A outorga de permissão qualificaria o permissionário a prestar serviços no território nacional, sendo-lhe permitido operar, mediante prévio registro na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em qualquer ligação entre duas localidades.

Mais importante ainda é a experiência dos reguladores do TAP no tocante à exigência de licitação. Os órgãos reguladores (o DAC, no passado, e a Anac, desde 2005) têm permitido a entrada de novos prestadores de serviço de TAP sem licitação. Essa liberdade de entrada, associada à desregulamentação desse mercado ao longo dos anos 90, determinou o dinamismo experimentado pelo setor e o significativo aumento do volume de passageiros transportados ao longo das duas últimas décadas.

O Tribunal de Contas da União (TCU) viu aí um desatendimento à letra formal da lei. Reconheceu, no entanto, que a contratação direta, sem licitação, para concessões de serviços públicos é possível ser estipulada legalmente, citando o exemplo a Lei Geral de Telecomunicações. Nesse sentido, o TCU determinou ao Conselho de Aviação Civil (Conac) que avaliasse se o instituto da concessão é o mais indicado para o transporte regular de passageiros ou se deve ser proposta alteração na legislação pertinente. Em resposta, o Conac, em julho de 2009, encaminhou Projeto de Lei à Presidência da República que substitui o regime de concessão pelo de autorização.

Essa substituição deve ser contemplada também no caso do Trip. O regime de autorização está previsto na lei que regulamenta o transporte terrestre, já sendo adotado no caso do transporte rodoviário de passageiros sob regime de afretamento. Segundo esse texto legal, a autorização independe de licitação; é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição; e não prevê prazo de vigência ou termo final.

A opção pelo regime de autorização, ao viabilizar a livre entrada de empresas nas ligações interestaduais, instituirá um mecanismo eficaz de adequação da oferta de serviços de transporte à demanda existente e de promoção de concorrência capaz de assegurar a modicidade tarifária e, portanto, acesso a maiores estratos da população. Por outro lado, não excluirá a existência de normas que assegurem a continuidade e a qualidade do atendimento da demanda e a estabilidade da oferta. De resto, essa reforma assegurará que as empresas que vêm prestando Trip de forma adequada continuem a fazê-lo e expandam suas atividades, agora em um ambiente de concorrência que beneficiará a população.

Este momento - em que todas as outorgas têm prazo vencido e os permissionários estão operando, em caráter precário, em regime de "autorização especial" - é o ideal para se adaptar a Lei à nova realidade da economia e à crescente demanda por um transporte popular mais eficiente, no qual a disputa concorrencial seja fator efetivo em benefício do consumidor.

Eduardo Augusto Guimarães é professor titular de Economia da UFRJ

Pedro Dutra é advogado; conselheiro do Instituto Brasileiro de Concorrência (Ibrac)