Título: Sem sentido
Autor: Carvalho , Ney
Fonte: Valor Econômico, 17/02/2010, Opinião, p. A11

Quando eclodiu a crise mundial, em setembro de 2008, o governo brasileiro bradou aos quatro ventos que, devido à nossa sólida regulação, o sistema bancário do país tinha ficado imune às turbulências externas. De fato, com baixa exposição internacional, os bancos brasileiros não foram afetados pelos acontecimentos nas terras dos "louros de olhos azuis".

Além dos custos brutais para os contribuintes das necessárias intervenções governamentais, o hemisfério norte foi abalado pela revelação de robustos pagamentos de bônus a executivos de casas financeiras socorridas com recursos estatais. Esses fatos provocaram indignação em todos os quadrantes da Terra.

Entretanto tais desembolsos, por mais que moralmente inaceitáveis, se fundamentavam em acordos de trabalho que previam as circunstâncias em que os mesmos deveriam ser pagos. Desde o Direito Romano, matriz dos institutos legais do ocidente, cristalizou-se princípio universal, alicerce da segurança jurídica nas sociedades civilizadas: pacta sunt servanda, ou seja, contratos devem ser observados, quer dizer, cumpridos. Aqueles pagamentos derivavam de contratos de trabalho e, como tal, teriam que ser cumpridos.

Assim como ficou protegido dos solavancos da crise e não necessitou socorro financeiro do governo, o sistema financeiro nacional não foi alvo de qualquer crítica quanto a pagamentos de gratificações a seus executivos. Nem poderia. Os desembolsos, quando ocorrem, são feitos com recursos próprios, em cumprimento a contratos privados, contra os quais não cabe clamor de qualquer sorte.

Em outra vertente, os governos do chamado G-20, em interpretação apressada e duvidosa, típica de órgãos pressionados politicamente, entenderam, em dois encontros em Londres e Pittsburgh, em abril e setembro de 2009, que as práticas de remuneração variável dos bancos internacionais haviam sido parte importante na geração da crise de 2008. Não tiveram o cuidado de aguardar estudos acadêmicos, ou apreciações menos açodadas, sobre as verdadeiras raízes da bolha e sua crise consequente.

Patrocinaram, para simples efeito demonstração perante seus públicos internos, por meio do organismo denominado Financial Stability Board (FSB), a elaboração de diretrizes para um guia internacional padronizado do que supunham ser boas condutas para compensações variáveis de executivos nos diversos sistemas financeiros.

Países do G-20 coordenaram a elaboração de uma camisa de força, em função de críticas e constrangimentos políticos que viveram face à frouxidão de suas regras. Nada que diga respeito ao Brasil, sua economia ou negócios.

O relatório com os padrões para implantação dos princípios estabelecidos pelo FSB foi publicado em 25 de setembro de 2009. Como todas as recomendações de organismos internacionais, suas sugestões não são coercitivas.

As propostas do FSB se dirigem, fundamentalmente, a órgãos reguladores e às instituições financeiras relevantes, presumindo-se como tais as maiores em cada país, ou seja, não todas. E se dividem em cinco tópicos. O primeiro recomenda a criação, nas casas ditas relevantes, de comitês de remuneração. É, apenas, mais uma instância burocrática para supervisionar o acompanhamento das diretrizes emanadas do FSB. O segundo sugere que as remunerações variáveis não devem dificultar a manutenção de sólidas bases de capitalização das empresas envolvidas. Ou seja, não se deve enfraquecer e exaurir o capital dos bancos em distribuição de gratificações. Essa recomendação beira o risível. Equivale a sugerir que não se deve assassinar a galinha dos ovos de ouro. A diretriz seguinte orienta a que remunerações variáveis sejam pagas parte em dinheiro e parte em ações da própria instituição, diferida ao longo do tempo, de modo a que se mantenha um compromisso do staff com os objetivos de longo prazo da instituição. O quarto item demanda a divulgação pública dos pagamentos efetuados à guisa de participação em resultados. Finalmente uma requisição a que reguladores promovam a efetivação dos princípios em suas respectivas jurisdições.

Não estamos cuidando de um tratado internacional que constrange as partes envolvidas e a que ficaríamos obrigados. Mas de orientações, não mandatórias, que se sugere sejam observadas.

Não obstante, o Banco Central do Brasil postou em seu site em 2 de fevereiro, para audiência pública, um projeto de resolução do Conselho Monetário Nacional, do qual faz as vezes de secretaria, que incorpora, ipsis verbis, o roteiro sugerido pelo FSB. A proposta não encontra respaldo em nosso passado, recente ou remoto, no presente que vivemos, nem no futuro que pretendemos para o Brasil. Muito menos leva em conta o sucesso de nossas experiências. Trata-se de cópia autêntica de medidas tomadas de afogadilho para remendar os fracassos acontecidos em outras plagas.

Em matérias jornalísticas sobre o tema, a chefe adjunta do Departamento de Normas do Banco Central classificou a medida como "prudencial". Já o presidente fez declarações mais explícitas: "A ideia é muito simples: é evitar que os ganhos de curto prazo aumentem a própria remuneração, o executivo assuma riscos que depois sejam negativos para a economia, para o país, para o setor público e para o próprio sistema financeiro."

Mais do que prudência o Brasil demanda, hoje, a coragem de assumir riscos para financiar o salto de desenvolvimento que pretendemos. E isso é tarefa primordial do mercado financeiro privado. O setor público, que já tem peso excessivo na área, limita-se a conceder crédito conforme padrões burocráticos de eficiência discutível, não ostentando a criatividade e agilidade necessárias para a magnitude de nossos desafios.

Na verdade, o projeto do Banco Central caminha na contramão dos interesses brasileiros. Trata-se de placebo, solução inócua para problema que não temos. Pretender controlar remunerações para reduzir riscos que não corremos é providência absolutamente sem sentido.

Ney Carvalho é historiador.