Título: Projeto para preservar peixe-boi e aves causa protestos no Piauí
Autor: Maia , Samantha
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2010, Brasil, p. A4

Um forte debate envolvendo desenvolvimento econômico e proteção do ambiente tem agitado o Piauí nos últimos meses. O Instituto Chico Mendes (ICM) propôs a criação de uma unidade de conservação de uso restrito em 30 quilômetros de área costeira, quase metade da extensão das praias do Estado (66 quilômetros). O objetivo é preservar a vida de animais como o peixe-boi e aves migratórias, mas a iniciativa foi recebida com protestos por parte do poder público local, população e investidores.

O receio dos envolvidos com a região é de que as restrições de ocupação e uso do litoral afetem o crescimento do turismo e de atividades como a criação de camarão, a pesca e a energia eólica. O projeto está em período de audiência pública e a intenção é concluir o processo de criação da unidade ainda este ano.

A iniciativa, apesar de polêmica, é apenas parte de uma meta maior do governo federal de proteger, no mínimo, 10% do bioma marinho e costeiro até 2015. O objetivo é ousado, já que hoje apenas 1% desse meio está resguardado em unidades de conservação no país, cerca de 36,6 mil km2. "Vai demandar um esforço muito grande, mas será positivo, já que o percentual de proteção é muito baixo", diz Rafael Magris, analista ambiental do ICM. A proposta inicial de criação do refúgio da vida silvestre Peixe-boi Marinho no Piauí tem 480 km2.

Segundo o deputado federal Osmar Junior (PCdoB-PI), se implantada segundo o modelo apresentado na audiência pública, a unidade de conservação causará forte impacto na economia da região. "Ela criará sérias dificuldades de investimento para o Estado e para a população." Ele diz que os municípios do litoral - Ilha Grande, Parnaíba, Luis Correia e Cajueiro da Praia - têm cerca de 189 mil moradores, dos quais muitos dependem de atividades realizadas na região para viver.

O governo estadual pediu uma revisão do projeto e, de acordo com o secretário de Meio Ambiente do Piauí, Dalton Melo Macambira, a área de uso restrito deverá ser reduzida. "O litoral do Piauí já é reduzido e a unidade ocuparia uma parte significativa dele. A ideia é ter um projeto alternativo, que compreenda um espaço menor, suficiente para proteger os animais sem criar conflitos com os investidores, a população e o poder público", diz o secretário. O Estado quer propor que o limite da unidade no continente seja a linha da água do mar, e que o restante da praia seja considerado de uso sustentável, como já é hoje. O governo estadual se reunirá com o ICM para discutir a questão.

Pela proposta original, a área conservada se estenderia por 30 quilômetros de praia, do município piauiense de Luis Correia a Barroquinha, no vizinho Estado do Ceará. A unidade avançaria 10 quilômetros para dentro do mar e 50 a 200 metros para a praia a partir da linha da água. Considerando esse total, Magris, do ICM, diz que a preocupação com o prejuízo sobre o desenvolvimento econômico da região não se justifica. "A proibição de algumas atividades, como a carcinicultura e a pesca com arrasto, já deveria existir pela agenda de gerenciamento costeiro atual. A unidade serviria como uma proteção extra, para aumentar o rigor da lei."

Segundo o levantamento realizado pelo instituto, há atividades ilegais sendo realizadas na região, como a criação de camarão em manguezais, que precisam ser impedidas independente da unidade de conservação.

Roberto Dutra, diretor da empresa de carcinicultura Acnor, defende a produção no Estado e diz que a atividade está dentro da lei. Presente no Piauí desde 1982, a Acnor possui 20 fazendas de criação de camarão no litoral em áreas fora do mangue. "Mas a proposta inviabiliza todas as fazendas, uma atividade tão importante para a região e que não prejudica o peixe-boi", diz. Segundo Dutra, o setor produz cerca de 2 mil toneladas por ano de camarão, um faturamento anual de R$ 15 milhões. "Há condições para aumentar essa produção, mas o projeto de conservação inviabilizaria a expansão", diz.

O Instituto Chico Mendes, porém, considera a atividade uma das maiores ameaças aos estuários que abrigam a espécie, segundo relatório colocado em consulta pública. A pesca, por sua vez, não foi considerada uma prática de impacto significativo ao peixe-boi, mas alguns métodos devem ser proibidos, como o uso da rede. Outra atividade que deve ser interrompida é a de kitesurf - esporte com prancha e pipa -, até que se prove que ela não prejudica a espécie, segundo o ICM.

Uma das maiores preocupações do instituto é evitar a ocupação desordenada na região, risco que existe com o crescimento do turismo e já verificado em outros Estados, como no Ceará. Ao menos duas praias são citadas pelo ICM como em situação de alerta no Piauí por ocupação excessiva: Barra Grande, em Cajueiro da Praia e as dunas do Farol do Itaqui, em Luis Correia. "Criar uma unidade de conservação deve ser interessante até para o turismo, pois evita a degradação da área", diz Magris.

Dessa forma, a ampliação da rede hoteleira deve sofrer impactos com a aprovação da unidade de preservação. Hoje, por exemplo, está em processo de licenciamento ambiental um empreendimento de R$ 18 milhões, para a construção de um resort no município de Luis Correia. O resort, chamado Kuaradé, ocupará 2 quilômetros de praia. A incorporadora Delta do Parnaíba, responsável pelo projeto, informa que não tem acompanhado diretamente a discussão sobre a determinação de uso restrito da área, mas que acredita não haver problemas, pois o empreendimento é "muito respeitoso com o meio ambiente e a beleza natural daquela região é o principal ativo do projeto", diz em nota.

Para geração de energia elétrica, há 19 projetos de usinas eólicas a serem implementados na região, à medida que forem realizados os leilões pelo governo federal. A Siif Énergies do Brasil é responsável por seis desses projetos, um investimento de R$ 600 milhões em uma área de 2 mil hectares. Segundo Marcelo Picchi, diretor-presidente da empresa, a unidade de conservação não deve impedir os empreendimentos. "Os projetos já estão cadastrados na EPE para participarem dos próximos leilões, e eles estão fora da área que poderá se tornar de uso restrito", diz ele. O investimento é de R$ 600 milhões.

Para Carlos Moura Fé, superintendente da Secretaria de Meio Ambiente do Piauí, o projeto de unidade de conservação ambiental foi rejeitado pela população porque gerou muitas dúvidas sobre as consequências que trará para vida na região. "O nosso medo é de que, ao criar muitos entraves e restrições, a população passe a ver o peixe-boi como inimigo, e não é essa a intenção", diz.