Título: Intervenção é remédio amargo e traumático
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2010, Opinião, p. A8

O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar em breve o pedido de intervenção no governo de Brasília. Trata-se de proposta do Ministério Público ao descalabro político que tomou conta da capital da República. É justa a indignação da opinião pública com as cenas explícitas de corrupção que levaram o governador José Roberto Arruda à cadeia e o vice, Paulo Octávio, a redigir a carta de renúncia ao cargo. Mas intervenção é um remédio amargo, de repercussão política complexa, enfim, uma medida traumática cuja aplicação merece cuidado e reflexão.

Antes de qualquer coisa é necessário que se esgotem todas as demais medidas democráticas para debelar a crise. Bem ou mal a Câmara Distrital de Brasília deu encaminhamento aos pedidos de impeachment tanto do governador Arruda quanto de seu vice, Paulo Octávio. Por enquanto não há problema administrativo ou de ordem pública, antes pelo contrário: o policiamento da cidade foi ostensivo no Carnaval e o descontrole no combate à dengue independe da presença do governador ou de um interventor em palácio. E é certo que o eleitor candango merece a oportunidade de cuidar da própria sorte no limite dos recursos que a Constituição oferece.

À população de Brasília é devido inclusive o direito de se manifestar sobre a autonomia política do Distrito Federal, algo simples de ser feito, até mesmo por meio de plebiscito na eleição marcada para outubro. Vinte e dois anos depois de promulgada a Carta de 1988, são muitas as dúvidas sobre a necessidade de Brasília e as cidades que orbitam a seu redor elegerem Câmara Distrital, sete deputados federais e três senadores. É bem mais do que tinha o Rio de Janeiro na condição de capital da República. Vista de hoje, a autonomia concedida ao DF parece um daqueles excessos comuns a períodos de ruptura, mesmo tendo sido negociada a redemocratização.

Medida extrema e rara, a intervenção requer a aprovação do Congresso Nacional, a não ser em casos muito específicos determinados pela Constituição, o que não parece difícil, no caso de Brasília, diante da degradação do ambiente político da capital. Mas não é por ser fácil que este se configura o melhor caminho. É necessário que seja bem analisado o que significa a intervenção. A título de exemplo, cite-se que não podem ser promulgadas emendas à Constituição em períodos em que uma unidade da federação estiver sob intervenção.

Trata-se, evidentemente, de um exercício de raciocínio. Por outro lado, a decretação da intervenção no Distrito Federal, sem dúvida, cria o precedente. E não são apenas dois ou três os pedidos de intervenção federal em Estados, especialmente por atraso no pagamento de precatórios. Não faz muito tempo que o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, recusou pedido do Ministério Público gaúcho para autorizar intervenção federal no Rio Grande do Sul por inadimplência do Estado no pagamento de um precatório com pouco mais de cinco anos de atraso.

À época, Gilmar argumentou: "E enquanto o Estado se mantiver diligente na busca de soluções para o cumprimento integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes os pressupostos para a intervenção federal solicitada". O ministro falava do Rio Grande do Sul, Estado que havia quebrado no curso de uma sequência de administrações desastrosas e com uma governadora acuada pela oposição. No entanto, o próprio Gilmar Mendes advertiu: "O Estado que assim não proceda (diligência na busca de soluções) estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judicial, atitude esta que não encontra amparo na Constituição Federal".

Registre-se que o interventor dificilmente conseguirá fazer alguma coisa em nove, dez meses, período que falta para posse do sucessor de Arruda, a ser eleito em outubro. É pouco tempo também para que se esgotem as alternativas democráticas, antes da intervenção, que deve ser sempre o último recurso. Mas será sempre preferível pagar penitência pela má escolha dos governantes a queimar etapas de uma Constituição conquistada a duras penas. A intervenção pode lavar a alma do eleitor decepcionado com a desfaçatez política. Mas por se tratar de uma medida extrema é que deve prevalecer a razão e a intervenção ser evitada enquanto for possível.