Título: As negociações dos acordos :: Fernando de Magalhães Furlan
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 19/02/2010, Opinião, p. A14

Em 2008, logo depois de tomar posse como membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, tive a iniciativa de apresentar ao plenário uma proposta de criação de uma estrutura técnica permanente dedicada às negociações de acordos. Tal iniciativa surgiu da preocupação e do interesse que compartilhava com o então conselheiro Paulo Furquim de Azevedo de mais bem disciplinar, estruturar e profissionalizar essa crucial atividade para a defesa da concorrência: os acordos com os agentes econômicos.

Tal proposta veio a se transformar na Resolução Cade nº 50/08. Nessa mesma esteira apresentei nova proposta que se transformou na Resolução Cade nº 51/09, que criou as comissões de negociação, a funcionar como auxiliares do relator em acordos em casos de conduta anticompetitiva.

O Cade tem a prerrogativa de celebrar várias espécies de acordos com as empresas. Nos moldes dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) do Ministério Público, há os Termos de Cessação de Conduta (TCCs), em que empresas investigadas por conduta anticompetitiva (cartel, por exemplo) preferem fazer um acordo com o Cade (pagando um valor, reconhecendo a participação nos fatos, se for o caso, cessando a conduta, etc.) em vez de esperar por uma possível condenação. Outro tipo de acordo é o Termo de Compromisso de Desempenho (TCD), pelo qual num ato de concentração as empresas aceitam assumir metas e compromissos em troca da aprovação da operação; os Acordos de Preservação da Reversibilidade da Operação (APROs), celebrados em atos de concentração complexos em que, por precaução, o Cade e as empresas envolvidas preferem manter a separabilidade da operação, prevenindo problemas futuros no caso de reprovação, ou seja, para resguardar a possibilidade de o Cade reverter a operação.

Ocorre que nos demos conta de que era preciso criar uma estrutura permanente responsável pelas negociações desses acordos, criando inteligência, histórico, debate de melhores práticas internacionais, fazendo com que os conselheiros (cujos mandatos são efêmeros) pudessem ser acompanhados nas negociações por servidores de carreira, até, inclusive, como forma de dificultar comportamentos indesejados e diminuir a dependência dos administrados em relação aos humores e pendores dos conselheiros. Tomamos, assim, um conjunto de iniciativas em relação a isso:

1) Criamos, por resolução, um grupo técnico permanente de negociações;

2) Criamos, por resolução, comissões ad hoc de negociação para cada proposta de acordo apresentada ao Cade;

3) Investimos na formação específica em técnicas de negociação dos servidores do Cade, membros do grupo de negociações, que realizaram cursos, por exemplo, na prestigiosa Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e em outros centros de excelência na área;

4) Realizamos reuniões quinzenais para discutir melhores práticas internacionais em negociações, discutir acordos já celebrados e aprender com os erros, dentre outros projetos.

Todas essas iniciativas contribuíram para que o Cade, desde 2007, destinasse ao Fundo de Direito Difusos do Ministério da Justiça (para onde vai o dinheiro arrecadado nos acordos e que é aplicado em projetos relativos a interesses difusos, como, por exemplo, ambiente, patrimônio histórico e artístico, defesa do consumidor, concorrência, saúde etc.) o valor recorde de R$ 195.940.724,51. É de se enfatizar que esse valor é fruto de acordos, com pagamento voluntário pelas empresas, economizando tempo e recursos (financeiros e humanos) do Estado brasileiro e até mesmo das empresas.

Recente levantamento elaborado pelo Cade, e divulgado pelo Valor mostrou que as empresas estão recorrendo cada vez menos à Justiça contra as decisões do Conselho. Ao contrário do início da década, quando todas as decisões do colegiado antitruste iam parar no Judiciário, hoje, mais de 80% das determinações são cumpridas voluntariamente pelas empresas.

Em 2009, as empresas que sofreram reveses no Cade, como multas e imposições para que retirassem cláusulas de seus contratos, ingressaram com apenas 46 processos no Judiciário. É menos da metade de 2008, quando foram registrados 105 novos processos. Além disso, os pagamentos espontâneos de multas aumentaram: foram 79 depósitos, em 2009, ante 64, em 2008.

A postura pró-negociação do Cade, contudo, não deve ser percebida como uma espécie de "afrouxamento" das responsabilidades do órgão antitruste, mas como uma atuação mais proativa, visando alcançar mais rapidamente, sem descuidar do conteúdo, os objetivos da política de defesa da concorrência no país.

Não obstante, é sempre bom lembrar que quando não é possível chegar a um acordo com as empresas, o Cade não tem se furtado a cumprir o seu papel com o rigor necessário, a exemplo da recente multa recorde de R$ 352 milhões aplicada à AmBev, pela pratica de conduta unilateral anticompetitiva (adoção de programa de fidelização de pontos de venda, com a imposição de exclusividade). Nesse caso, apesar de a empresa haver recorrido à Justiça, viu-se obrigada a prestar garantia do valor da multa à própria Justiça (fiança).

Essas iniciativas e ações do Conselho se coadunam com uma administração pública moderna, em que se buscam soluções alternativas negociadas, contribuindo, inclusive, em grande medida, com a desobstrução do sistema Judiciário.

É certo, contudo, que ainda há setores da administração pública, e mesmo da sociedade civil, refratários a esse tipo de inovação, vez que, em certa medida, retira poder daqueles que preferem a via do contencioso e do conflito, por diversas razões. Mas essa tendência anacrônica está sendo ultrapassada com a experiência, que, aliás, vem mostrando o quão bem sucedidos são empreendimentos dessa natureza.

Fernando de Magalhães Furlan é Conselheiro do Cade desde janeiro de 2008, onde também foi procurador-geral (2001/2003). Mestre e doutor pela Universidade de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), cursou aperfeiçoamento em negociações na Universidade Harvard (2008). Supervisor do Grupo Técnico de Negociações do Cade. Professor universitário em Brasília