Título: Aberto à negociação
Autor: Cezar , Genilson
Fonte: Valor Econômico, 19/02/2010, Especial, p. F1
A indústria brasileira de cartões de crédito passa por momentos de radical transformação. Os cartões tradicionais de tarjas magnéticas estão praticamente em extinção. Migram aceleradamente para os cartões com chips, conjunto de circuitos eletrônicos que embutem informações e senhas dos usuários, aumentando a segurança das transações. Novos sistemas inteligentes chegam ao mercado, como cartões com leitura por microrrádio, por aproximação à máquina, além de celulares que fazem as vezes, nos estabelecimentos comerciais, de terminais e realizam transações de crédito, com igual rapidez e segurança.
A grande mudança do setor, entretanto, deve ocorrer a partir de julho, quando acaba o contrato de exclusividade da Visa com a Cielo (ex-VisaNet), abrindo aos lojistas do país a possibilidade de escolher livremente com qual bandeira de cartão de crédito desejam operar. No Brasil, até agora, essa escolha tem se limitado praticamente à Cielo e à Redecard (credenciadora MasterCard), que, juntas, controlam cerca de 90% do mercado.
Não é só: novas regras para a indústria estão em gestação nas esferas do Governo Federal, destinadas a incentivar maior competição e atrair novos participantes para o setor. A expectativa é que novas empresas se habilitem para credenciar lojistas a receberem, indistintamente, cartões com as principais bandeiras do mercado internacional, como Visa, MasterCard, American Express e Diners Club.
O impacto dessas mudanças ainda não está devidamente mensurado, mas a evolução certamente é positiva, avalia Paulo Rogério Caffarelli, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). "Com o fim da exclusividade, a pressão da competitividade vai aumentar significativamente, principalmente entre as credenciadoras ou adquirentes, que são as empresas que autorizam os estabelecimentos comerciais a aceitar cartões de crédito e débito de uma determinada bandeira. Isso vai acabar se refletindo numa redução de preço das taxas cobradas para o lojista e, consequentemente, em melhores serviços para os usuários", afirma Caffarelli.
Hoje, informa o executivo, o custo das taxas pagas ao adquirente por transação efetuada numa loja está entre 2% e 4%. "Mas a competitividade pode induzir a pagamentos de taxas menores", insiste ele. Além disso, o fim da exclusividade traz outro benefício, que é a interoperabilidade dos terminais POS (ponto-de-venda) instalados nos estabelecimentos comerciais. "Os lojistas não vão precisar mais de duas a quatro máquinas para operar com os cartões das várias bandeiras, o que diminuirá o aluguel dos equipamentos", assinala.
Para os usuários de cartões, de acordo com o presidente da Abecs, os benefícios virão com as ofertas de melhores serviços que os atuais e novos players terão que fazer na disputa por maiores fatias do mercado. Os volumes de negócios atuais do setor já são bem apreciáveis, segundo ele. São mais de 628 milhões de cartões, entre débito e crédito, que devem proporcionar, em 2010, um total de 7,1 milhões de transações e uma receita da ordem de R$ 535 bilhões. Um aumento de 20% sobre o faturamento registrado em 2009.
A expectativa é que esse patamar atinja R$ 800 bilhões em cinco anos. Ou seja, é um setor bastante rentável para os participantes atuais. "Não acreditamos em perda de receita num cenário de mais competitividade. Estamos crescendo bem no mercado brasileiro e temos capacidade para continuar em fase de expansão", assegura Rômulo de Mello Dias, presidente da Cielo, a maior rede de pagamento do país, com mais de 1,7 milhão de estabelecimentos credenciados, cobrindo 97,5% dos municípios brasileiros.
Em 2009, a receita operacional líquida da Cielo foi de R$ 3,6 bilhões. Significou aumento de 25,4% sobre 2008. No ano, a empresa acumulou lucro de R$ 1,5 bilhão.
De acordo com o executivo, a estratégia para maior crescimento passa por mudanças organizacionais e tecnológicas. Em meados do ano passado, depois de 14 anos atuando sob a denominação VisaNet do Brasil, a empresa adotou a nova marca Cielo. "A mudança faz parte do nosso plano estratégico para preparar a companhia para operar em um cenário multibandeira, a partir de julho", justifica Dias.
Na parte de tecnologia, os investimentos têm por objetivo, segundo o executivo, garantir maior capilaridade do negócio. Hoje, são mais de 1,8 milhão de terminais, praticamente 98% deles prontos para aceitar cartão com chips. "O aumento do parque de máquinas, que tem a ver com rapidez e segurança de informação, faz parte dos procedimentos e da logística que adotamos para oferecer produtos diferenciados aos estabelecimentos comerciais", ressalta o executivo.
A Redecard, responsável pelas transações com MasterCard, também não perde o sono com a possibilidade de ter de enfrentar mais competidores. "Na verdade, o Brasil já tem vários concorrentes no mercado de cartões de crédito. Alguns deles são nacionais, outros regionais, como a Sorocred, de Sorocaba, o Banrisul (Banco do Estado do Rio Grande do Sul), e o Hipercard, no Nordeste. Isso mostra que o nosso mercado está em processo de amadurecimento", diz Roberto Medeiros, presidente da Redecard. "Não definimos nossa estratégia com base nos concorrentes, mas de acordo com o interesse dos nossos clientes", acrescenta ele.
A empresa tem objetivos bem definidos para aumentar sua participação no mercado. Em 2009 a Redecard fechou com receita operacional líquida de R$ 3,07 bilhões, com crescimento de 18,9% em relação a 2008. O lucro líquido atingiu R$ 1,3 bilhão. Ao longo do ano, a empresa passou por uma reestruturação acionária significativa, com a venda da participação detida pelo Citibank; agora, o controle acionário está com o Itaú Unibanco.
A empresa investiu também na busca de eficiência e otimização de suas áreas comerciais, operacionais e tecnológicas. "Fomos os primeiros a fazer antecipação dos recebíveis aos clientes, os primeiros a proporcionar acesso da transação por celular, e o primeiro a ter uma das maiores certificações de segurança do mundo, a PCI DSS (Data Security Standard). Agora, estamos aumentando nossa presença no segmento de médicos, dentistas, educação e distribuição de produtos, além de ampliar nossa cobertura geográfica, particularmente no Nordeste e Centro-Oeste", informa.
O maior desafio para o sucesso das estratégias de crescimento do setor de cartões, de acordo com os executivos, é o estabelecimento de novas regras que estimulem a competitividade. O arcabouço do modelo regulador inovador já está praticamente pronto. Foi amplamente debatido pelos agentes da indústria e pelo grupo de trabalho criado pelo governo (Banco Central, Secretaria de Direito Econômico-SDE, do Ministério da Justiça e Secretaria de Acompanhamento Econômico-SEAE, do Ministério da Fazenda), encarregado de definir as alterações do modelo de funcionamento da indústria de cartões. "Chegamos a um denominador comum com o Governo Federal e nossa proposta de autorregulação foi enviada em dezembro passado aos técnicos da comissão governamental", adianta Paulo Caffarelli, presidente da Abecs. Os prontos principais, aponta ele, são: o fim da exclusividade de bandeiras, interoperabilidade das redes e dos terminais POS, criação de uma clearing independente para as atividades de compensação e liquidação, fortalecimento de esquemas nacionais de cartões de débito e transparência na definição da tarifa de intercâmbio.
O BC não quis comentar o andamento das discussões em torno das novas regras. Mas, segundo sua assessoria, "a perspectiva para os estudos de autorregulamentação é de que a proposta formulada pelo setor sirva de ponto de partida para uma ampla negociação em torno dos principais temas que envolvem a questão da indústria de cartões no Brasil, naquilo em que o BC tenha competência e legitimidade para opinar".
Grandes instituições do mercado financeiro, possíveis candidatas a se tornarem também credenciadoras, manifestam-se com cautela. O Banco Santander, que formalizou no início de janeiro sua parceria com a GetNet, uma das maiores empresas de captura e processamento de transações eletrônicas, evitou fazer comentários sobre se vai mesmo concorrer com a Redecard e a Cielo, a partir de julho. O Bradesco, que recentemente assumiu participação no capital da Cielo, observa que continua acompanhando os movimentos em direção à abertura de mercado. "O Bradesco investiu muito no mercado de cartões e hoje, como banco emissor, tem mais de 22% de market share. Estamos muito bem posicionados nesse jogo e nos preparando para uma nova dinâmica competitiva no mercado de cartões de crédito", afirma Marcelo Noronha, diretor do departamento de cartões.
Cautelosa está também a Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), que representa 151 sindicatos de classe, que abrangem cerca de 600 mil empresas, responsáveis por 10% do PIB brasileiro e gera em torno de cinco milhões de empregos. "Nossa visão não é tão otimista. É uma boa abertura terminar com o duopólio no mercado de cartões, mas acho que não vai ser fácil outros players crescerem num mercado já estabelecido, com grandes competidores. Se isso ocorrer, vai levar muitos anos", comenta Abram Szajman, presidente da Fecomercio.
Para ele um dos problemas mais graves para os lojistas é a taxa de retorno que as credenciadoras aplicam sobre as vendas, hoje por volta de 5%. "Isso é muito alto. Esperamos que a expansão da concorrência ponha fim a essas distorções", afirma Szajman.