Título: Crise acentua impasse de Copenhague
Autor: Chiaretti , Daniela
Fonte: Valor Econômico, 25/02/2010, Especial, p. A16

O executivo de sotaque francês perguntou sem constrangimento: "Com as notícias diárias que a Europa está passando por problemas financeiros e que os Estados Unidos também têm dificuldades, vocês não acham irrealista a estratégia de sempre, de pedir dinheiro para o mundo em desenvolvimento?". O interlocutor brasileiro, um dos negociadores mais experientes do país no regime climático, não piscou: "Irrealista por quê?". José Domingues Miguez, coordenador-geral de mudanças do clima do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), prosseguiu: "Este é só um ponto de vista, o dos europeus". O diálogo, que ocorreu ontem durante um seminário em São Paulo, ilustra que a negociação internacional por um acordo climático recomeça este ano exatamente no mesmo impasse da conferência de Copenhague - com os conflitos Norte-Sul explicitados.

A temporada do circuito do clima reabre em 9 de abril, provavelmente em Bonn, com uma reunião dos dois trilhos de negociação - o dos países com metas no Protocolo de Kyoto e o dos países que não têm metas mas assinam a convenção do clima. Se a notícia rompe a paralisia que sucedeu à CoP-15, a pauta não é exatamente excitante: marcar os próximos encontros e ver como o circo climático continua para chegar a Bonn, em junho, mais azeitado, e terminar o ano em Cancún, no México, na CoP-16.

Isso sem falar nas reuniões paralelas - o grupo dos Basic, que reúne China, Brasil, Índia e África do Sul já se encontrou em Nova Déli, em janeiro, e tem outra reunião em abril, na Cidade do Cabo. Negociadores japoneses encontram brasileiros nos próximos dias. Em março e maio, França e Noruega chamam reuniões sobre Redd (o mecanismo ainda não implementado sobre a redução de emissões de gases-estufa por desmatamento), mas com debates e projetos a todo vapor. E a reunião em Cochabamba, na Bolívia, puxada por um dos países que rejeitaram o fraco Acordo de Copenhague na plenária das últimas horas da CoP-15, parece concorrida: os bolivianos dizem esperar sete mil pessoas.

"Porque não é realista? O irmão do Norte imprime dinheiro quando precisa", continuou Miguez, questionado durante seminário sobre oportunidades e desafios do mercado de carbono no pós-CoP-15, promovido por várias empresas do setor e pela BM&FBovespa. Miguez, que também é da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, das Nações Unidas, prosseguiu lembrando os US$ 700 bilhões que surgiram para dar solvência aos bancos, durante a crise financeira mundial, e que o Acordo de Copenhague prevê apenas US$ 30 bilhões, em quatro anos, para os países mais vulneráveis à mudança climática. "Você quer penalizar Índia, China e Brasil?", continuou Miguez. "Essa é uma discussão perigosa."

Ele falava a 120 executivos que atuam ou querem atuar com projetos de geração e venda de créditos de carbono, ligados a empresas de consultoria, de energia, de telecomunicações, de usinas de álcool e açúcar. Os empresários buscam informações para prosseguir com suas decisões de investimentos depois que o acordo internacional não aconteceu em Copenhague. Enquanto a regulamentação não vem, observam os movimentos do chamado mercado voluntário, que corre em paralelo ao regido pelas regras do Protocolo de Kyoto. O preço do carbono caiu 10% depois da CoP-15, mas o mercado continua promissor, dizem os analistas. "O mercado continua crescendo muito, mesmo sem regulação", disse Divaldo Rezende, diretor executivo da Cantor CO2e Brasil. Ele deu os números: foram US$ 60 bilhões em 2007 e o dobro deste valor no ano seguinte. Em 2009 o mercado cresceu pouco, movimentando US$ 125 bilhões e, para este ano, as previsões falam em US$ 170 bilhões. "Isso com todas as inseguranças nas regras e sem a entrada dos americanos", celebrou. Em 2020, quando os Estados Unidos entrarem no jogo, Rezende estima um horizonte de negócios globais de US$ 3 trilhões.

O Brasil tem 5804 projetos de MDL, a sigla para Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, instrumento previsto no Protocolo de Kyoto pelo qual empresas que não conseguem cumprir sua meta em casa podem fazê-lo investindo em projetos de tecnologia limpa em países em desenvolvimento. China e Índia, com matrizes energéticas mais sujas, têm uma fatia maior deste bolo. Os projetos de MDL brasileiros significam redução anual de 47 milhões de toneladas de carbono nas emissões de gases-estufa. A um preço médio de US$ 10 a tonelada, são US$ 476 milhões com a venda de créditos. "O carbono é nosso 17º produto de exportação", disse ele. Em 8 de abril, na BM&FBovespa, ocorrerá o primeiro leilão deste tipo de créditos.

Se o mercado anda, à revelia das indefinições do acordo internacional, a falta de clareza que a CoP-15 jogou no processo de negociação abre o tal cenário "perigoso", nas palavras de Miguez, a "própria Babilônia, com cada país com seu próprio sistema de regulação, onde ninguém se entende e prevalece a lei do mais forte." Ele identifica esse panorama com o cenário mais pessimista do IPCC, o painel científico da ONU. Para os cientistas, se os países não fizerem nada, a temperatura do planeta pode chegar a 6° C em 2100. Para Miguez, esse é o quadro do cenário de conflito, onde os países estão preocupados com o ambiente, mas mais angustiados com sua própria segurança energética para enfrentar invernos tão rigorosos quanto o deste ano, no hemisfério Norte. "Então é a Europa, os Estados Unidos, a China queimando carvão e a Terra virando Vênus", resume.

O conflito Norte-Sul nas negociações do clima, cada vez mais explícito, se sustenta em dois vetores opostos de pensamento. Para os industrializados, o futuro é o problema - então, as emissões das nações emergentes, em crescimento, têm que ser freadas. Para o lado de cá, o argumento é o passado. Foi a industrialização dos outros que causou o problema e a responsabilidade deles é maior que a dos emergentes. "E há o efeito acumulativo dos gases-estufa na atmosfera", reforçou. A maior parte do CO2 emitido permanece ali por 100 anos e 20% fica por 800 anos.

O físico José Goldemberg deu a visão da Ciência: as emissões mundiais continuam aumentando quase 2% ao ano e nesse ritmo chega-se a um aumento de 2° C na temperatura em 2050, o que é muito. Para o clima, disse, "não importa se quem emite é a China ou os Estados Unidos". Continuou: "Copenhague significou a perda das ilusões. É muita ingenuidade pensar que a China vai mudar sua trajetória de crescimento em base a decisões tomadas pelos outros."