Título: Bancos públicos, crédito e a eficácia das políticas anticíclicas :: Antonio Alves Jr e Rogério Studart
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/01/2010, Opinião, p. A12

A crise financeira americana acabou se mostrando para o mundo como um tsunami, com consequências ainda em desdobramento. Somente os países que tinham espaço e instrumentos para implementar políticas anticíclicas, conseguiram manter-se "acima do nível da água". No caso do Brasil, os resultados até agora alcançados são invejáveis: saímos da crise com um crescimento anual próximo de zero em 2009, resultado excelente diante da gravidade da crise, especialmente quando se considera a criação de quase 1 milhão de empregos com carteira assinada; e geraram-se as condições de um crescimento de mais de 5,5% no próximo.

Esses resultados só foram possíveis, cremos, pela atuação de sólidos bancos públicos (como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal). Eles tiveram um papel fundamental em, pelo menos, três componentes importantes da resposta anticíclica: manutenção do nível de financiamento; evitar um possível colapso do crédito privado; e facilitar a política anticíclica fiscal. Entender essa relação pode ser fundamental para definir políticas econômicas no futuro.

Comecemos com o mais evidente: a relação entre crédito público e o nível agregado de crédito na economia. Um dos primeiros sintomas dos efeitos da crise sobre o Brasil foi a reação do setor financeiro privado. Frente a uma situação de crescente incerteza, os bancos privados brasileiros adotaram um comportamento defensivo: buscaram ativos líquidos e reduziram fortemente o ritmo de expansão dos empréstimos. Mesmo com o aumento significativo de recursos disponibilizados aos bancos privados pelo Banco Central, o efeito sobre o crédito privado foi pífio: no início da crise, o saldo das operações de crédito privado cresceu, em termos reais, pouco mais de 1%; entre setembro de 2008 e novembro de 2009, cerca de 4,5%. Nos mesmos períodos, as operações dos bancos públicos expandiram-se em 11,6% e 37,5%.

O papel do crédito público foi além de compensar a queda do privado e, cremos, evitou, inclusive, uma retração real dos empréstimos privados. Isso porque numa situação de incerteza, como já mencionamos, a reação primeira dos bancos privados é de reduzir prazos e aumentar as taxas de empréstimos. Junte-se essa tendência à abrupta queda da produção industrial no início da crise, e as empresas teriam sua capacidade de repagamento comprometida duplamente, tanto pelo aumento dos custos financeiros como pela queda das receitas. Caso os bancos públicos não tivessem reagido rápido, poderia ter havido crescimento da inadimplência. Nessas circunstâncias, os bancos privados tenderiam a reduzir ainda mais o volume e os prazos de financiamento, enquanto as empresas teriam de ajustar-se cortando empregos e gastos. Teríamos provavelmente uma processo vicioso conhecido como crise Minskyana. Evitar esse processo foi, portanto, o segundo componente do apoio dos bancos públicos para superarmos a crise.

Um outro pilar da resposta anticíclica no Brasil foi a política fiscal, e também aqui a expansão do crédito público foi fundamental para garantir seu impacto - sobre a geração de renda e emprego - e sua eficácia, definida aqui como aquela que tem efeito anticíclico ampliado ao mesmo tempo que gera infraestrutura e capacidade produtiva para apoiar uma retomada sustentada do crescimento. Para entender isso temos de separar a resposta fiscal em duas parte: uma se deu por meio da transferência direta de renda e estímulo à demanda por bens de consumo; outra teve a ver com a manutenção e estímulo ao investimento. Em ambos os casos, garantir condições de crédito adequadas foi crucial.

Primeiramente, se a demanda agregada expandida pelo aumento do salário mínimo e pela ampliação do Bolsa Família se confrontasse com uma produção de bens de consumo restrita ou sujeita a condições financeiras deterioradas (de juros e prazos), parte do ajuste entre oferta e demanda se daria por meio de mais inflação, menos emprego e menos renda. Em segundo lugar, uma deterioração das condições de financiamento impactaria de forma diferenciada os produtores, de acordo com o volume de capital necessário e do tempo transcorrido entre a encomenda e a entrega dos bens e serviços oferecidos. Por exemplo, as encomendas de bens e serviços para atender ao gasto de custeio são menos dependentes de crédito, considerando que seu ciclo produtivo é tipicamente curto, enquanto os investimentos públicos em rodovias, saneamento e habitação popular, ou os investimentos das empresas estatais dependem mais das condições e volume de crédito. Caso os bancos públicos não tivessem feito qualquer tentativa de ampliar esses gastos, em condições de elevada incerteza, com crédito privado escasso e caro e menor acesso ao financiamento no mercado de capitais, seria constrangida pela falta de financiamento.

Assim, tudo mais constante, não fosse a resposta dos bancos públicos, o impacto da política fiscal seria limitado e tenderia a se concentrar nos gastos de curto prazo. Consequentemente, setores como a construção civil e os estaleiros seriam duramente afetados, atrasando a geração de empregos, e prejudicando o crescimento da infraestrutura, tão cara para pavimentar o caminho do desenvolvimento sustentado. Mas isto não ocorreu: de fato, o investimento do governo federal subiu de 0,9% do PIB, em 2008, para 1,1% do PIB, em 2009, enquanto os investimentos das estatais se elevaram de 1,4% do PIB para 1,9% do PIB. Mais ainda: as empresas privadas que concorreram às licitações das obras do PAC e dos demais programas de investimento puderam ter acesso a financiamento. E isso só foi possível porque os bancos públicos recriaram o acesso aos recursos financeiros para as empresas que forneceram bens e serviços diretamente encomendados ou fomentados pelo governo.

Em suma, a existência de sólidos e significativos bancos públicos no Brasil é reconhecidamente fundamental para nosso desenvolvimento no longo prazo. Na crise, mostrou-se também um importante determinante da eficácia e impactos das políticas (monetária e fiscal) anticíclicas, o que explica em grande medida porque somos umas das poucas economias no mundo que estão enfrentando esse tsunami econômico como se esse houvera sido realmente uma "marolinha".

Antonio José Alves Junior é professor de economia da UFRRJ e chefe do DEREG/BNDES.

Rogério Studart e diretor-executivo adjunto do Brasil e de oito outros no Banco Mundial.