Título: Projeto social ajuda empresa a suprir suas carências
Autor: Watanabe , Marta
Fonte: Valor Econômico, 25/01/2010, Brasil, p. A4
Ao verificar que havia entre os possíveis alunos um estudante de Campo Limpo Paulista, município a 41 quilômetros da cidade de São Paulo, o instrutor Jaime Ferreira dos Santos Filho quis verificar se seria viável ao candidato locomover-se por transporte público diariamente da sua casa ao local de treinamento, com endereço na marginal Tietê da capital paulista. Para ter certeza, fez o trajeto que o estudante faria, usando ônibus e trem. Depois da longa viagem, concluiu que, no caso, talvez a melhor opção seja ir até Campinas, outra cidade do interior paulista, e de lá pegar um ônibus fretado.
O cuidado com o candidato revela a preocupação social do ProJovem, programa que foi idealizado para resolver uma questão operacional da Vocal, braço da Volvo para revenda de caminhões. Cláudio Zattar, diretor-superintendente da Vocal, explica que a empresa tinha, em 2008, dificuldade em reter os mecânicos e mecatrônicos que faziam manutenção de caminhões. "A empresa treinava os profissionais e logo os perdia, muitas vezes para pequenas oficinas." A rotatividade chegava a 27%. "Era um taxa alta. Em menos de quatro anos já tínhamos toda a equipe trocada", diz. "Precisávamos de profissionais mais comprometidos com a empresa." Foi aí que surgiu, conta Zattar, a ideia do ProJovem, um programa pelo qual a Vocal qualifica e contrata jovens de 16 e 17 anos integrantes de comunidades carentes.
A Vocal não foi a única empresa que colocou um projeto social em prática para resolver questões operacionais. Outras empresas, como a construtora Odebrecht e a concessionária de energia elétrica Ampla, também fizeram caminho semelhante.
A Odebrecht passou a oferecer treinamento e capacitação de profissionais gratuitos em Rondônia. O programa foi idealizado quando a construtora detectou déficit de mão de obra qualificada em Porto Velho, capital rondonense, antes do início das obras da Usina Santo Antônio. Segundo Antônio Cardilli, gerente administrativo-financeiro do programa Acreditar, um levantamento inicial da construtora mostrou que havia na região apenas disponibilidade de 30% dos 10 mil trabalhadores necessários para a obra. A empresa oferece treinamento técnico para formação de soldadores, pedreiros, mecânicos e eletricistas, entre outros.
"A ideia foi evitar os riscos e os investimentos de trazer tanta gente de fora, com repercussão para os serviços públicos locais de saúde e educação", explica Cardilli. "Levamos em conta também a história da região, que no ciclo da borracha e do garimpo atraíram muitos migrantes que vieram com o único intuito de expropriar riqueza."
O programa foi implantado em 2008. Até o fim do ano passado passaram pelo treinamento técnico da empresa cerca 5,5 mil pessoas em Rondônia. A meta da construtora é chegar aos 9 mil até o fim de 2010. O programa deve consumir investimentos de R$ 12 milhões e, após os resultados em Porto Velho, foi aplicado também em outros locais com obras da construtora. Segundo Cardilli o aproveitamento dos profissionais formados é praticamente de 100%. "Só não é contratado quem não quer", diz. "Atualmente cerca de 84% do total de trabalhadores é local", comemora Cardilli.
Na área de energia elétrica, a Ampla também achou uma solução original para reduzir o roubo de energia. A concessionária, que atende municípios do Rio de Janeiro, percebeu que medidas tradicionais como modernização da rede e maior fiscalização não foram suficientes para reduzir a taxa de 26% de furto de energia. Foi então que começou, em 2003, a implantar um amplo programa de educação e conscientização sobre o consumo de energia. A empresa ministra também cursos que parecem ir além da sua área de atuação, como o que ensina a elaborar um orçamento doméstico e o que prepara jovens para o primeiro emprego.
O programa é acompanhado de reforma de instalações elétricas residenciais, doação de lâmpadas econômicas e geladeiras eficientes. Desde que foi implantado, diz o diretor de relações institucionais da empresa, André Moragas, o conjunto de programas reduziu a taxa de roubo de energia para 20%. "Ainda estamos acima da média brasileira, de 16%." Entre 2006 e novembro de 2009, a concessionária reformou as instalações elétricas de 102 mil clientes e, em 2009, trocou 7.194 geladeiras.
Em 2009, a concessionária investiu nos programas cerca de R$ 10 milhões. O valor, explica Moragas, originou-se de uma mudança de destinação de recursos. As concessionárias são obrigadas a destinar 1% de sua receita operacional líquida para programas de eficiência energética. Esse dinheiro, que costuma ser direcionado a programas com grandes consumidores e entidades filantrópicas, passou a custear um programa que hoje beneficia 226 mil pessoas nas regiões de São Gonçalo, Magé, Niterói e Caxias. "Trata-se de um população carente de serviços públicos. Era necessário tornar o cidadão mais consciente para cobrar direitos e entender deveres."
A ideia do programa ProJovem, da Vocal, também é dar mais que uma oportunidade de emprego para jovens de comunidades carentes. "Nossa tarefa não é só formar mecânicos. O objetivo é a criação de cidadãos. Os jovens que se formam aqui sabem que o vai mantê-los em qualquer lugar é a postura deles", diz o instrutor Santos Filho.
A seleção dos candidatos é feita por uma organização não governamental com a qual empresa tem parceria. Com investimento de R$ 400 mil da Vocal em 2009, os jovens recebem um salário mínimo, além de benefícios como plano de saúde e cesta básica. Passam por treinamento nos laboratórios da empresa e também por aulas de português e matemática e noções de cidadania na ONG. Como contrapartida, os candidatos precisam estar matriculados no ensino médio. O salário médio para o mecânico de caminhões na Vocal é de R$ 1,2 mil mensais.
Com dez alunos, a primeira turma foi montada em agosto de 2008 e formou-se no fim de 2009. "Como ainda é recente, ainda não temos uma nova taxa de rotatividade, mas não há dúvidas de que ela será menor", diz Zattar. A diferença, explica, é que os novos alunos são mais envolvidos. "Para eles, é uma grande oportunidade e eles têm uma vontade de aprender impressionante." Com o programa, Zattar sentiu liberdade de estabelecer uma medida administrativa inédita. Antes, explica, os mecânicos que deixavam a empresa conseguiam ser recontratados quase sempre. "Nossa demanda era tão grande que sempre aceitávamos o profissional de volta", lembra. Agora, não. A regra geral é não aceitar o retorno. A volta precisa ser previamente autorizada.
Zattar conta que os mecânicos formados pelo ProJovem veem a empresa com outra perspectiva. "Os pais dos estudantes também participam. Como parte do programa, eles conhecem a empresa e sabem que os filhos têm oportunidades aqui. Eu tenho contato frequente com os pais. As mães ligam para perguntar sobre os filhos ou simplesmente para avisar que um deles tem dentista e não poderá vir no horário", explica o instrutor Santos Filho. Dos dez primeiros alunos, diz, sete já foram contratados. Os outros três ainda não foram porque foram obrigados a prestar serviço militar. "Mas já foram chamados a voltar assim que puderem", diz Santos Filho.
Tiago Barros Rocha é um dos que participaram da primeira turma de jovens mecânicos da Vocal. "Aprendemos quem é o mecânico e não só dos motores, mas também processos e padrões", diz. Bem articulado, ele conta que se interessou pela área de consultoria dentro da carreira de mecânico, mas não conseguirá ficar na Vocal.
Rocha deve se mudar para Vitória da Conquista, na Bahia, com os pais e o irmão. Seu ano de treinamento na Vocal, porém, não será desperdiçado. A revendedora arranjou uma colocação semelhante para Rocha numa concessionária Volvo no local em que irá morar. O jovem de 18 anos parte de São Paulo com a certeza de chegará ao local bem-qualificado. "O que aprendemos aqui muita gente não conhece", sorri Barros, ao lado de seus colegas Felipe Barros Bertechini e Cleiton Vinicius Tavares Silva "Eu quero aprender mais. Não é sempre que há uma oportunidade assim", diz Silva. Antes do treinamento, Felipe trabalhou durante três meses numa empresa de digitação. Bertechini ajuda a tia, que tem uma perua para transporte escolar.
"Eu não quero que eles parem por aqui. Depois do colégio quero que eles façam curso de tecnólogo", diz o instrutor Santos Filho. "E daqui a alguns anos quero reencontrar o Thiago, que vai para a Bahia. Quero que ele me diga que virou gerente lá", completa ele. A declaração faz Rocha, Bertechini e Silva ficarem sérios. A expectativa do instrutor está em suas mãos.