Título: A inflação e a má distribuição de renda
Autor: Lessa , Carlos
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2010, Opinião, p. A13

Li com atenção, na semanapassada, o diálogo do presidente Henrique Meirelles com Wall Street.Segundo o jornalista Alex Ribeiro, a pergunta recorrente foi "porque omercado financeiro doméstico anda tão nervoso com câmbio e juros?".

Aparentemente,a delegação do Banco Central viajou para garantir a imagem de umprocesso sucessório bem tranquilo. Certamente, a presença de HenriqueMeirelles e sua palavra quanto ao processo sucessório foi absolutamentetranquilizadora. Afinal de contas, há pouco tempo, o ministro daFazenda, Guido Mantega, declarou que o dólar brasileiro deveria ficar aR$ 2,70. Segundo o ministro, com essa cotação o Brasil seriaindustrialmente competitivo com a China e com a Índia. Como nadaaconteceu no mercado de câmbio, a dedução nossa e de Wall Street é queo presidente Meirelles tem controle total e completo sobre os juros e odólar e sua presença em New York reitera a total confiança de WallStreet. Tanto é assim que banqueiros americanos afirmaram que decisõesimediatas do BC sobre câmbio e juros já não afetam mais as decisões deinvestimentos estrangeiros no Brasil. A presença do presidenteMeirelles foi a garantia de que "tudo continua como antes no Quartel deAbrantes" ou, como os ingleses em Gibraltar, o presidente Meirelles éinamovível.

A provávelfutura elevação de juros e a projeção do BC de cobrir, em 2010, odéficit de transações correntes de US$ 40 bilhões com o ingresso de US$45 bilhões em investimentos estrangeiros diretos (IED) permite aoespeculador mais cauteloso afirmar que é bom aplicar no Brasil, obteros juros reais mais elevados do planeta e, eventualmente, ter em dólarum ganho "surreal" se o real se valorizar.

OBrasil continua indexado. Os preços administrados - notadamente astarifas de serviços públicos e a pauta de energia elétrica - têmcaminhado por cima da inflação. Os preços administrados no IPCA sãocerca de 33% do índice, ou seja, como disse A. Modenesi, do IPEA, ataxa primária de juros (Selic) tem que ser maior para uma dada meta deinflação.

Apersistência da inflação brasileira é inquestionável. Durante a crisede 2009, o mundo inteiro entrou em deflação e o Brasil preservou osseus 4,5% de alta de preços. A inflação brasileira não é residualsomente; é resistente. Permite aos preços indexados serem cada vez maisrelativamente elevados (hoje o Brasil pratica uma das mais elevadastaxas de energia elétrica residencial do mundo, apesar de ser umparaíso hidrelétrico e, antes da privatização, ter uma das mais baixasdo planeta); permite ao BC, em nome de uma taxa de juros de equilíbrio,praticar a mais elevada taxa de juros do planeta; facilita aos bancospreservar o spread ultra elevado e balanços deslumbrantes. O Brasil,com indicadores absolutamente medíocres, viu o lucro de seus bancoscrescer 8% em 2009.

Naperspectiva dos que ganham com os juros altos, a inflação resistente éo argumento perfeito para optar por um crescimento econômico rastejantee medíocre. De 2003 a 2008, entre os países da América Latina, ocrescimento do PIB brasileiro somente superou a Guatemala, Nicarágua,El Salvador e México. Perdemos para a Argentina, Venezuela, Equador eBolívia.

Nemcrescimento, nem estabilidade. O presidente Meirelles já deu seu recadopara Wall Street: fiquem tranquilos pois o festival brasileirocontinuará recebendo, da melhor forma possível, os capitaisespeculativos ciganos.

Olongo e tradicional processo inflacionário brasileiro, desde suareativação após o Golpe Militar de 1964 (a partir de 1968, a taxainflacionária foi restabelecida) expressa uma correlação de forças emque os donos do poder sempre conseguiram manter seus preços reajustadosà frente dos salários. A inflação depreda o capital sob forma monetáriae financeira: favorece o devedor em relação ao credor. No Brasil, osdonos do poder obtiveram a indexação patrimonial-financeira e, a partirda tesouraria dos bancos comerciais, puderam converter sua caixa em"poupança" financeira, defendida da inflação. Foi criada no Brasil,entre fins dos anos 60 e início dos 70, uma defesa patrimonial perfeitae circularam dois dinheiros: um no bolso das pessoas físicas, que sedesvalorizava dia a dia e outro no caixa das empresas, sob a forma deaplicação de curtíssimo prazo no mercado monetário defendido dainflação. Na corrida de preços e salários, sempre era possívelreajustar preços preventivamente para reposição de estoques.Obviamente, os salários vinham sempre atrás e, por mais que osnegociadores sindicais tentassem encurtar prazos e fórmulas dereajustes, era possível acelerar antecipadamente a correção dos preços.Na corrida, o salário sempre vem depois dos preços e, com a indexaçãofinanceira, nenhum cavalo quebra suas pernas devido a perdapatrimoniais. Os donos do poder aceitavam a aceleração inflacionária eapenas resmungavam quando algum governo pretendia controlar preços. Osetor público controlava os preços das estatais, que perdiam posição. Aleitura ideológica neoliberal condenava o controle de preços,considerava as estatais ineficientes e estigmatizava o déficit públicocomo o responsável pela persistente inflação.

Sabemosque a Década Perdida assistiu diversos ensaios de estabilização,inclusive o Plano Cruzado, que desindexou radicalmente. Na ausência desustentação política, e como um canto de cisne do sonho do progressoeconômico e social, a hiperinflação foi utilizada para esterilizar aConstituição de 1988 e abrir caminho para sua desconstrução peloideário neoliberal. O Plano Real fez uma desindexação orquestrada,porém preservou a defesa patrimonial. Após variadas tentativas, foiadotado o modelo de Metas de Inflação, que converte o Banco Central noadministrador de dois preços-chave: juros e câmbio. O sistemafinanceiro nacional - banco e mercado de capitais - percebeu na taxa deinflação residual um poderoso aliado para justificar a taxa real dejuros elevada. O Banco Central articula juros com câmbio, e acombinação de juros elevados com real valorizado é "ouro" sobre azulpara o tecido especulativo. Como suprema perversidade, os fundos daprevidência complementar têm sua rentabilidade atrelada aos jurosaltos.

Nessecenário, quem perde são os brasileiros que não têm carteira assinada eos filhos das famílias já integradas que esbarram em um mercado detrabalho fechado e com poucos empregos de qualidade. O Brasil seconverte em exportador de mão de obra, frustra as esperanças dajuventude e possibilita o discurso de que "tudo está bem e será melhorno próximo ano". O país é imbuído de que é ótimo ser o 14º colocado emcrescimento na América do Sul - média inferior à da África - e praticara 31ª pior colocação em 31 países que avaliaram comparativamente aeducação básica. O presidente Meirelles garante esse resultado. WallStreet pode ficar tranquila: os bancos e mercado de capitaisbrasileiros estão elaborando o Plano Ômega para melhorar seudesempenho.