Título: Zona do euro, o pesadelo alemão
Autor: Wolf , Martin
Fonte: Valor Econômico, 10/03/2010, Opinião, p. A13

Desde que a República Federal foi fundada, a Alemanha teve dois objetivos estratégicos predominantes: moeda confiável e integração europeia. Esses foram os imperativos gêmeos aprendidos com as calamidades do início do Século XX. O euro concretiza esses objetivos. Agora, eles estão em mútuo conflito.

Será a resposta certa salvar os pecadores, reforçando assim a coesão da zona euro, mas ameaçando a estabilidade monetária? Ou será o correto deixar os pecadores inadimplentes, reforçando a credibilidade monetária, mas enfraquecendo a coesão? A Alemanha poderia evitar tais escolhas antes da adoção da moeda única: países não competitivos simplesmente desvalorizariam sua própria moeda.

Infelizmente, o debate interno alemão supõe, erroneamente, que a solução está em que todos os membros se tornem como a própria Alemanha. Mas a Alemanha pode ser a Alemanha - uma economia com disciplina fiscal, demanda interna fraca e enorme excedente exportador- somente porque os outros não o são. Seu modelo econômico atual viola o princípio da universalisabilidade do maior filósofo alemão: Immanuel Kant.

É fácil, com base no caso da Grécia, concluir que países ficam em dificuldades devido a seu próprio desleixo. Segundo o mais recente relatório Perspectivas Econômicas da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), a dívida pública bruta ficou em 115% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano passado, o déficit público foi 12,7% do PIB e o déficit em conta corrente, de 11,1%.

Esse, então, seria um caso clássico para intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Normalmente, isso proporcionaria apoio temporário de liquidez, em troca de desvalorização e rigor fiscal. No entanto, o governo alemão rejeita a ideia de que um organismo externo venha a ditar a política de um país que usa a mesma moeda que a Alemanha. Os alemães sugerem, em vez disso, que deveria ser criado um Fundo Monetário Europeu (FME) para proporcionar liquidez condicional. Sob a direção dos outros membros da zona euro, o FME ditaria a política fiscal ao pecador.

Membros do governo alemão também querem que sanções sejam aplicadas. Entre as ideias estão: suspensão dos subsídios na União Europeia - os fundos de coesão - a países que não respeitem a disciplina fiscal; suspensão do direito de voto em reuniões ministeriais, e até mesmo a suspensão da zona do euro.

No entanto, criar um FME exigiria um novo tratado, assim como a exclusão de instituições da zona do euro (embora um país não pudesse ser impedido de utilizar o próprio euro). Multar os países em dificuldades fiscais revelou-se impraticável no passado. Hoje, a maioria dos membros precisaria ser multada. Continue sonhando!

Devemos observar uma dificuldade ainda maior. A noção de que a grande ameaça é a indisciplina fiscal é falsa.

A Grécia é um caso especial. Os excessos fiscais atuais não são resultado da indisciplina fiscal, mas de indisciplina privada. A segunda, aliás, foi um elemento inerente ao funcionamento da própria zona do euro. Foi assim que a economia da zona euro se manteve equilibrada, a um nível razoável de demanda geral, no período pré-crise.

Esse aspecto é melhor compreendido a partir do saldo financeiro dos membros da zona euro em 2006, antes da crise, e em 2009, em seu auge. O saldo de receitas e despesas públicas, privadas e de setores externos é , necessariamente, nulo. Em 2006, a Alemanha, a Holanda e a Áustria registraram enormes excedentes privados, relativamente ao PIB, ao passo que os setores privados de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha tiveram enormes déficits. As posições fiscais pareciam sob controle em todos os países: a Irlanda e a Espanha ainda registravam consideráveis (ainda que ilusórios) superávits fiscais. Enquanto isso, os superávits privados da Alemanha e da Holanda foram compensados por enormes saídas de capital. No geral, vemos desequilíbrios privados, mas também uma ilusão de estabilidade fiscal, pois os países estavam mais ou menos de acordo com critérios do Tratado para déficits fiscais.

Então veio a crise: setores privados excessivamente endividados passaram a conter seus gastos. Em 2009, os setores privados de quase todos os membros (da zona do euro) registravam enormes superávits: são todos alemães, agora! Onde está o outro lado da moeda? A resposta é: nos déficits fiscais. O cenário, para a Irlanda e a Espanha, é dramático. No curto prazo, é impossível reverter contas externas com rapidez, principalmente quando a demanda doméstica dos países superavitários é tão fraca.

Agora, a Alemanha insiste em que cada país deveria eliminar seu déficit fiscal excessivo o mais rápido possível. Mas isso só pode acontecer se os saldos em conta corrente melhorarem ou se os saldos privados deteriorarem. No segundo caso, seria preciso um ressurgimento dos gastos privados, presumivelmente financiados por endividamento. No primeiro caso, há duas opções: primeiro, os saldos em conta corrente precisam deteriorar em outros países da zona do euro, o que implicaria o surgimento de menores superávits privados em países como a Alemanha. Ou, segundo, o balanço geral na zona do euro deveria passar a ser superavitário - uma política do tipo "empobrecer o vizinho" (beneficiar-se em detrimento de outro país).

Na prática, o resultado mais provável de tal austeridade fiscal seria uma recessão em países com grandes déficits externos e fiscais. Dada a falta de competitividade desses países com déficit externo e a fraca demanda no resto da zona euro, essas quedas na atividade econômica podem se tornar de muito longa duração. A questão é se as populações tolerarão isso. Se não, crises políticas surgirão, com consequências essencialmente incertas.

Permitam-me colocar a ideia central com bastante clareza: os superávits estruturais do setor privado e em conta corrente alemães tornam praticamente impossível a seus vizinhos eliminar seus déficits fiscais, exceto se esses vizinhos estiverem dispostos a conviver com longos períodos de queda na atividade econômica. O problema poderia ser resolvido se a zona do euro passasse a incorrer superávits externos. Não sei como a zona do euro poderia explicar tal política a seus parceiros mundiais. O problema poderia também ser resolvido por uma política monetária expansionista do Banco Central Europeu (BCE), que teve êxito em estimular gastos privados nos países superavitários e também elevou a inflação alemã para muito acima da média na zona euro.

A Alemanha está numa armadilha que ela própria concebeu. Os alemães querem que seus vizinhos sejam tão semelhantes a eles mesmos quanto possível. Eles não podem ser, porque sua demanda doméstica deficiente não pode ser universalizada. Como poderia ter dito outro grande filósofo alemão, Hegel, a tese germânica exigiu uma antítese espanhola. Agora que a bolha no setor privado estourou, a síntese é um desastre fiscal na zona do euro. Ironicamente, a Alemanha precisa tornar-se menos alemã para que a zona do euro possa se tornar mais.