Título: Custo Brasil
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 20/01/2010, Opiniõa, p. A10

Um dos objetivos nacionais deveria ser a produção de leitores em larga escala, em um tempo histórico mínimo

Na volta do encontro de Natal, ao abrir as malas, as roupas exalavam ainda o odor adocicado de jaca de Trancoso, uma madeleine cabocla que explodiu em flash backs solares: quinze dias de praia sem nuvem, traineira para Caraíva, rede na varanda, falésias, o vai e vem da maré no horizonte e a lua cheia na virada do ano. Tudo perfeito, não fosse o sofrimento desnecessário, causado pela insídia do Custo Brasil, que nos submeteu ao seu ordálio característico, já no início, no aeroporto de Guarulhos.

A ineficiência nacional derrota mesmo aqueles com décadas de experiência. Em horas ao telefone reconfirmamos nossas reservas, especialmente a da cachorrinha. Todavia, no check in - o que não nos surpreendeu (o pior custo é essa perda da sensibilidade) -, ela não havia sido feita. A atendente, por um milagre, conseguiu que embarcássemos. Ao lado - Céus! Como Kafka estava certo! - várias famílias não tiveram a mesma sorte. "Estou levando a ceia", dizia uma senhora, em prantos.

Eis o Custo Brasil: sofrimento desnecessário e desperdício de tempo e dinheiro para o usuário e para a empresa, obrigada a arcar com chamadas extras que incidem sobre um sistema cronicamente sobrecarregado e pondo em risco seu caríssimo investimento em marketing a cada lista do Procon, matéria negativa e presença na seção de carta dos leitores.

RH e Operação mudam procedimentos, treinam a mão de obra. Meras gambiarras. O cerne do problema, o nosso analfabetismo funcional, permanece incólume. Nas pesquisas acerca do entendimento do conteúdo do texto feitas pela ONU e a OCDE, os brasileiros, independente de classe social, ficam nos últimos lugares.

Varre o Brasil, de cabo a rabo. Em Trancoso, acertamos com um serviço anunciado em panfleto razoavelmente leiautado, uma viagem de barco até Caraívas, parando na volta na praia do Espelho. Ao combinar o passeio, exigi coletes salva-vidas para todos. No embarque, vi um bolo deles amontoados na proa. Por ser óbvio, não me ocorreu solicitar escada lateral e escaler seguro.

Quase morri. No meio da viagem, paramos para dar um pulo no mar. Quando quis voltar, vi que não havia escada que desse acesso ao convés. Sexagenário, fui objeto de esforços ingentes, que me fraturaram uma costela. Fui "salvo" pelo escaler, mal calafetado, que me serviu de trampolim para retornar ao barco. Na volta, descobrimos que os salva-vidas eram para crianças. A resposta do marinheiro: "Eu tinha fé em Deus que não iríamos precisar deles".

Em um restaurante, um casal esperou por duas horas até o garçom dizer que o pedido deles "não havia sido registrado". Em São Paulo, enquanto aguardávamos, ao pé da esteira, por mais de uma hora, pela bagagem, escutamos um senhor, vindo de Fortaleza, aflito, falar pelo celular com alguém de sua casa ou escritório, pedindo que lhe enviasse um documento. Por seguramente uma dúzia de vezes ele repetiu o seu endereço em São Paulo a um interlocutor que não sabia como endereçar um sobrescrito.

Mao afirmava que o conhecimento produto da observação direta é genuíno. Um industrial mexicano conseguiu se salvar da débâcle econômica do seu país, na década passada, ao ver que os vendedores de tamales na Praça Central estavam usando farinha de milho importada. O estagiário de minha advogada dizia "Nós vamo". Uma professora de Filosofia da Ciência pediu aos alunos que interpretassem "A Máquina do Mundo", de Drummond e, pálida, mostrou-me os resultados: a maioria achava que o poema se referia a um trecho da Bíblia; outros, que falava - de onde teriam tirado isso? - de uma plantação.

São, todos esses relatos e experiências, como pontas de um iceberg. Como evitar o naufrágio?

Para um dos maiores especialistas na questão da importância da leitura, o professor de teoria política e ex-Secretário Nacional da Leitura e iniciador do Movimento Nacional pela Leitura, Ottaviano de Fiore, um dos objetivos nacionais deveria ser a produção de leitores em larga escala, num tempo histórico mínimo. Segundo ele "os países avançados só se desenvolveram porque difundiram junto ao povo os instrumentos da informação escrita - o livro, a revista, o jornal e, hoje em dia, o computador. Um dos fatores decisivos para a criação de uma nação justa, rica e culta - a democracia moderna, igualitária e meritocrática que desejamos construir - encontra-se na capacitação do povo para o uso da informação escrita".

Vários pesquisadores deixam clara a necessidade do envolvimento de toda a sociedade no encaminhamento da solução para esse problema. As empresas, que poderiam diminuir muito os seus custos na medida em que contassem com mão de obra letrada, têm razões de sobra para incluir essa questão nas suas pautas de reivindicações e ver com outros olhos a destinação das verbas que aplicam na área da cultura, direcionando-as prioritariamente ao fomento do hábito da leitura.

Seja como for, o que está sendo feito não está funcionando. Os resultados de uma avaliação objetiva do entendimento do conteúdo do texto dos estudantes brasileiros, feita pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a cada três anos, são, no mínimo, preocupantes. No último ranking publicado pelo INEP, em 2006 - o de 2009, aplicado em maio, ainda não foi divulgado - a situação da leitura no país é crítica: o Brasil caiu dez pontos em relação ao teste de 2003. Passou de 403 pontos para 393, ficando ao lado do Qatar, Quirguistão, Azerbaijão, Tunísia, Indonésia, Romênia, Sérvia e Bulgária.

Isso significa que a média dos estudantes do país consegue apenas localizar informações ou reconhecer temas de um texto, habilidades do nível 1, o mais básico de cinco categorias. Organizar informações, descobrir o que é mais relevante, avaliar criticamente e demonstrar a compreensão detalhada do conteúdo lido, habilidades dos alunos com as maiores médias, são distantes do contexto médio do país.

Se continuar assim, só nos restará o destino antevisto por Drummond, no final de "A Máquina do Mundo": A treva mais estrita já pousara/ .../enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas."

Carlos Figueiredo é ex-secretário da Participação e Descentralização do governo Montoro e autor do Poesia no Metrô. figueiredo@globo.com