Título: Indexação ainda segura queda da Selic
Autor: Guimarães , Luiz Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2010, Finanças, p. C3

A alta do juro real nessa reta final do governo Lula deve servir de combustível aos debates eleitorais entre os candidatos a sua sucessão. Não faltam argumentos aos economistas do mercado para legitimar os juros elevados, nem justificativas para baixá-los por parte dos heterodoxos. Mas parece ser unanimidade entre as duas alas o ainda elevado grau de indexação da economia, tanto a financeira quanto a incorporada aos índices de inflação.

Contribui, por exemplo, para reduzir a eficácia da política monetária a elevada participação dos preços administrados no IPCA, que alcança a cerca de 33% desse índice. A insensibilidade desses preços à taxa de juros, aliada ao fato de que a taxa de crescimento dos mesmos, em geral, tem sido superior à inflação dos preços livres, requer que os preços livres sejam excessivamente represados, a fim de compensar a forte pressão (direta e indireta) exercida pelos administrados sobre o IPCA. "Para uma dada meta de inflação, a existência de preços administrados implica que a Selic deve ser mantida em nível superior àquele que seria necessário, caso todos os preços fossem livres", explica o pesquisador do IPEA, André Modenesi.

Outro entrave de transmissão: a alta participação das LFT no estoque da dívida pode gerar um canal perverso de transmissão da política monetária ou um efeito riqueza financeira às avessas. Um aumento da taxa básica geraria um incremento de renda que pode ampliar a demanda agregada, aumentando os preços. E uma elevação dos juros impacta negativamente o nível de atividade econômica. Entretanto, uma redução do nível de atividade tem efeito deflacionário muito reduzido. Ao puxar a Selic, o BC desaquece a economia. Entretanto, a inflação se reduz muito pouco em resposta a uma queda da atividade.

A segunda causa para o juro alto é a convenção (conceito desenvolvida pelo economista inglês John Maynard Keynes em 1937) conservadora. A morosidade no processo de diminuição da taxa básica somente se explicaria em função da aceitação por parte do BC de uma convenção estabelecida pelos agentes econômicos (e, sobretudo, pelo mercado financeiro) de que a taxa de juros de equilíbrio é muito elevada, podendo alcançar até 14%, e de que as decisões do Copom devem se basear em uma regra (a de Taylor) que suavize as variações da Selic. Tudo seria justificável à luz dessa convenção.

A explicação lançada pelos professores da FGV-SP Luiz Carlos Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano já é clássica. Como a Selic é utilizada para alcançar muitos e múltiplos objetivos, incompatíveis entre si, precisa permanecer em patamar exageradamente elevado. As metas são: 1) controlar pressões inflacionárias do lado da demanda; 2) evitar desvalorizações cambiais, cujo repasse para os preços gera pressões inflacionárias do lado da oferta (ou dos custos); 3) administrar o volume de reservas internacionais garantindo o financiamento do balanço de pagamentos; e 4) financiar o déficit público (ou induzir os investidores a carregarem a dívida pública).

Para Modenesi, não há razão para o BC perseguir taxas "neutras", "de equilíbrio" ou "naturais". Ele precisa desobstruir os canais de transmissão da política monetária e eliminar os mecanismos de indexação dos ativos financeiros, a começar pelas LFT. Os desafios ao próximo governo em busca de um juro real civilizado não são pequenos.

O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, observa que o conceito de taxa de juros de equilíbrio é bastante flexível e varia com o tempo. Se existe uma taxa estática de juros de equilíbrio seria aquela que permitisse um dado crescimento sem gerar inflação. "Gradualmente a taxa básica vai convergir para níveis de equilíbrio no futuro, mas isso vai depender de algumas mudanças", alerta Vale. Com uma meta de inflação de 4,5%, fica difícil pensar numa taxa real menor que a atual, de 6%. Isso pelo fato de que quanto maior o nível de inflação maior a taxa real necessária para manter a inflação no alvo. É como se a taxa de juros real fosse elástica à inflação, ou seja, a cada alta de 1 ponto percentual de inflação a taxa real precisaria subir mais do que um ponto percentual. Isso ocorre porque o risco inflacionário é assimétrico. Quanto maior a inflação, maior o risco de ela crescer ainda mais. Mas, por que isso ocorre? Porque, no entender de Vale, a inflação brasileira ainda é muito indexada, cerca de 60% dela olha para trás e olha para índices ruins como os IGPs, que tem uma volatilidade acentuada. "Basta lembrar que, enquanto o mundo inteiro estava com deflação, mesmo a acelerada China, nossa inflação não arredou o pé dos 4,5%", compara o economista.

Não se trata de um efeito do crescimento econômico, mas da indexação que ainda existe. Por essa razão, o consultor da MB considera equivocado usar o conceito de taxa de juros de equilíbrio no Brasil enquanto amarras de indexação ainda existirem. Para acabar com ela todos os índices de inflação teriam que ser extintos, menos o IPCA e um índice de preços ao produtor que o IBGE poderia fazer, e baixar a meta de inflação gradualmente. E sugere que, alternativamente à taxa básica, o governo poderia pesquisar mais intensamente como baixar os spreads - "estes sim absurdamente elevados".

Para o gestor da Claritas Investimento, Humberto Vignatti de Assis Silva, o BC busca detectar o "juro ótimo" para cada momento específico da economia. Se o ritmo efetivo de crescimento estiver compatível com o potencial de crescimento, a inflação tende a não incomodar. E o juro é o principal instrumento a disposição do BC para conseguir esse equilíbrio entre o PIB potencial e o efetivo. O juro que consegue cumprir esse objetivo é considerado "neutro". Trata-se de um juro que, sob determinadas condições macroeconômicas, "induz um crescimento econômico equivalente ao crescimento potencial, sem que surjam pressões inflacionárias ou deflacionárias".

O problema é que quantificar o hiato do produto é uma tarefa de extrema dificuldade. Por esta razão, o BC se cerca de diversos modelos econométricos para tentar a melhor aproximação possível. Estudos recentes sugerem que o PIB tem hoje um potencial de crescimento de 4,5%. Se crescer mais do que isso, a economia irá produzir inflação. O BC projeta para 2010 expansão de 5,8%. Como trazer o PIB para o seu potencial não inflacionário? Pela prática de um juro real neutro entre 7% e 8%. Ou seja, a Selic "ótima" deveria variar hoje entre 11,82% e 12,86%. A curva a termo da taxa de juros, implícita nos contratos de CDIs futuros negociados na BM&F, projeta taxa praticamente no meio entre as duas. Humberto Vignatti alerta que, como o juro real está hoje em 5,8%, atua para induzir mais crescimento econômico, "superior àquele suportado pela economia sem que apareçam pressões inflacionárias". Ou seja, no seu entender, o patamar atual é "expansionista".