Título: Temo que não haja mais cassação por doação ilícita, diz procurador eleitoral
Autor: Grabois , Ana Paula
Fonte: Valor Econômico, 26/02/2010, Política, p. A5

Titular da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves prevê que as eleições deste ano deverão ser um prato cheio para as doações ilícitas de campanha. Tudo por conta de um detalhe aprovado na minirreforma eleitoral no fim do ano passado no Congresso. A reforma inclui artigo que limita para 15 dias após a diplomação do candidato a possibilidade de acioná-lo na Justiça Eleitoral se houver prova de ilegalidade nas contas de campanha. Na prática, isso significa que nenhum político que tenha praticado irregularidades no recebimento de recursos de campanha poderá ser cassado após eleito. O prazo de 15 dias é considerado muito curto para formalizar uma ação com provas de recebimento e gasto nas eleições. O novo prazo ainda deixa o candidato derrotado livre da punição de inelegibilidade caso tenha recebido doação ilegal.

Autor de pareceres entregues ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) em ações contra vereadores de São Paulo acusados de receber doação ilícita, Gonçalves defende que o novo artigo é inconstitucional e deve ser ser levado ao Supremo Tribunal Federal (STF). Até que a Corte se pronuncie, o ambiente eleitoral já terá sido contaminado pela liberalidade.

A lei já afeta políticos eleitos em 2008 e 2006. O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (DEM), alvo de pedido de cassação do juiz da 1ª zona eleitoral da cidade, Aloísio Silveira, por ter recebido recursos de fontes proibidas, pode ser beneficiado pela lei aprovada no ano passado, segundo o procurador. A ação contra Kassab foi movida após o prazo máximo de 15 dias a contar da diplomação. Nas próximas semanas, a Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo fará parecer sobre o caso Kassab antes do julgamento no TRE. A cassação está suspensa até que o tribunal julgue o caso.

O governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (sem partido), preso e afastado do cargo por interferir nas investigações sobre o mensalão do DEM, no qual está envolvido, poderia ser beneficiado pelo mesmo motivo. Para especialistas, Arruda ficaria livre de cassação se a acusação fosse recebimento ilícito de recursos de campanha. O escândalo começou justamente com a divulgação de vídeo gravado em 2006 no qual Arruda aparece recebendo R$ 50 mil do caixa de campanha, Durval Barbosa.

Valor: O juiz eleitoral Aloísio Silveira pediu a cassação do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e de 14 vereadores por irregularidade em doações de campanha. O TSE quer coibir a doação oculta. O senhor vê um movimento organizado para moralizar as eleições?

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves: Os juízes eleitorais têm essa preocupação. No TSE, é quase uma militância do ministro Carlos Ayres Britto. Tem um histórico que pode ajudar a compreender o que está se passando. Fizeram a lei 11.300 em 2006, uma lei muito boa que deu espaço forte para a atuação da Justiça Eleitoral. Essa lei permitiu a cassação do mandato quando provado que o candidato recebeu recursos de fonte proibida. A lei 12.034, de 2009, retroage. Agora o TSE tenta fechar. A lei antiga tinha sido muito boa, a lei nova abriu as porteiras e o TSE agora tem um espaço que não é muito grande para tentar, por resolução, fechar um pouco. A lei não dá muito espaço para o TSE, a lei foi ruim.

Valor: Por quê?

Gonçalves: A grande questão, a questão verdadeira, não tem sido falada. Na minha opinião, está todo mundo fazendo um personagem. A lei 12.034 diz que essas ações de cassação só podem ser propostas em prazo de 15 dias da diplomação. Todo mundo sabe que vai chegar no TRE e o tribunal vai dizer que a lei prevê o prazo de 15 dias. Essas ações dos vereadores e do prefeito foram propostas depois de seis meses da diplomação, então a ação tem que ser extinta sem julgamento de mérito. Com um detalhe, quando a ação contra os vereadores e o prefeito foi proposta não tinha a lei.

Valor: Mas isso pode ser ressaltado no parecer?

Gonçalves: A tendência de julgamento em São Paulo é assim: a lei é interpretativa, então retroage. O julgamento do caso não vai ocorrer. Se a empresa doadora era concessionária, se era de fachada, se o candidato sabia que recebeu, essas questões não vão aparecer no julgamento, eles vão dizer que a lei 12.034 prevê o prazo de 15 dias para a ação. A ação foi proposta no prazo de seis meses e, portanto, não poderia ter sido proposta. Nos nossos pareceres já divulgados a ênfase é dizer: não tinha a lei na época, a lei não pode ser retroativa e esse prazo de 15 dias é inconstitucional. Se esse prazo for mantido significa que as ações devem entrar até o Ano Novo. A diplomação costuma ser até 18 de dezembro. Só que para demonstrar que a captação de recursos foi de fonte ilícita, são necessárias várias providências. Tem que ver extrato bancário, ver toda a contabilidade apresentada pelo candidato. Na prática, esse prazo vai impedir qualquer controle sobre doação vedada. Se o prazo for mantido, nenhuma verificação de doação vedada vai acontecer, ninguém vai ser cassado. No ano que vem não vai ter o que fazer. Esse prazo não existia, antes o TSE entendia que esse prazo era enquanto durasse o mandato do candidato eleito.

Valor: Na prática, ninguém vai ser cassado?

Gonçalves: Isso. No parecer sobre os outros vereadores, nossa preocupação é essa, achamos que é inconstitucional.

Valor: Isso vai parar no STF?

Gonçalves: Vamos ver, já estou suscitando a inconstitucionalidade nos pareceres. Precisa passar pelo TSE. O TRE vai ter que apreciar e o recurso é no TSE. Lá pode haver recurso porque a questão é constitucional, mas dificilmente isso tudo vai acontecer antes das eleições. O nosso temor é que nas próximas eleições ninguém vai ser cassado por doação ilícita.

Valor: Em relação ao caso Kassab, o prefeito foi acusado de receber doação de empresa sócia de concessionária. Mas não são apenas as concessionárias que são impedidas de doar?

Gonçalves: Eu não posso falar no caso do prefeito porque vou fazer o parecer. Posso falar do caso dos vereadores porque o parecer já está público. A lei não permite que uma concessionária de serviços públicos faça doação eleitoral. A questão que foi levada ao TSE nas eleições de 2006 foi diversa, era se uma empresa que tem participação acionária de uma concessionária poderia doar. Naquela decisão, criticável a meu ver, o TSE entendeu que poderia doar.

Valor: Foi a decisão das contas de 2006 do presidente Luiz Inácio Lula da Silva?

Gonçalves: Sim, ali foi uma abertura de flanco extraordinária.

Valor: E é sobre essa decisão do que a defesa do prefeito Kassab vai se basear.

Gonçalves: Isso. Foi uma decisão muito infeliz. Veja só, se sou um concessionário, não posso doar. Se tenho uma empresa que tem participação nela, posso doar. Por que uma empresa concessionária não pode doar? Por causa da circularidade, a empresa dá dinheiro para um determinado candidato. Essa atitude já é suficiente para a lei considerar. Esse dinheiro volta depois, o dinheiro fica circulando. Ficamos na dúvida se é doação ou empréstimo. A vedação da concessionária está na lei.

Valor: O senhor acha que o TSE pode mudar de entendimento?

Gonçalves: Com a nova composição no TSE, o tribunal está empenhado para fechar a porteira aberta. Porque o TSE escancarou a porteira antes, tem culpa no cartório.

Valor: Não ficaria contraditório o TSE mudar de opinião?

Gonçalves: Os ministros do TSE têm mandato de dois anos, não são os mesmos de 2006, houve variação grande. Nós, da Procuradoria Eleitoral, conhecemos o precedente do TSE, mas acreditamos que a corte poderá reexaminar. Esse reexame é o que está mais de acordo com o espírito de transparência nos gastos eleitorais.

Valor: Se empresa sócia de concessionária não puder mais doar e a doação oculta for proibida, o que vai acontecer com as campanhas? A maioria das doações questionadas em São Paulo são de empreiteiras e construtoras, tradicionais financiadoras. Qual é a saída?

Gonçalves: No mundo real, a maior doadora de campanha no Brasil foi essa AIB, a Associação Imobiliária Brasileira (empresa considerada de fachada para encobrir doações de sindicato de empresas de construção, o que é vedado por lei). O financiamento público de campanha tinha que passar. Sou totalmente a favor porque tem mais mecanismos de controle dos abusos do poder econômico. Não impede o caixa 2, mas dificulta porque se você tem R$ 100 mil que foram declarados e você faz uma campanha de R$ 1 milhão, de algum lugar o dinheiro tem que ter vindo. É mais fácil fazer essa contabilidade, o controle é mais efetivo. Entendo que esse dinheiro que a sociedade iria pagar com o financiamento, a sociedade já paga.

Valor: Por quê?

Gonçalves: No financiamento público de campanha a sociedade iria pagar às claras. Porque esse dinheiro antecipado pelo doador volta. Muitas vezes não é uma doação de campanha, é um empréstimo.

Valor: É um pensamento comum na Justiça Eleitoral?

Gonçalves: Há uma preferência clara na Justiça Eleitoral. Existe reconhecimento de que o sistema atual é poroso à corrupção. Não que o financiamento público seja o emplastro Brás Cubas, que vai curar unha encravada, mas dificulta a doação ilegal porque tem como contabilizar.

Valor: O senhor acha que a resolução do TSE da doação oculta vai ser aprovada?

Gonçalves: Ao TSE, só tenho elogios, fez um trabalho extraordinário. Ao TRE de São Paulo, tenho minhas reservas, é mais conservador.

Valor: Não é assim nos tribunais regionais do Brasil todo?

Gonçalves: Não, o TRE de SP é o mais conservador do Brasil

Valor: Mas não houve iniciativas em torno da transparência nesses tribunais?

Gonçalves: Mas nunca nascem daqui. Se você observar qualquer passo à frente da Justiça Eleitoral, não foi em São Paulo. O ficha-suja começou no Rio de Janeiro, o voto do preso começou no TRE de Porto Alegre. No Mato Grosso, começaram a punir que fez doação acima do limite.

Valor: Como o senhor vê decisão do juiz do caso Kassab de fixar em 20% de doação vedada como piso para definir abuso econômico? Por conta disso, políticos que receberam de fontes consideradas ilegais, como Marta Suplicy e Geraldo Alckmin escaparam de punição.

Gonçalves: Esse é um critério do juiz, mas não pode ser exclusivo, depende do valor. A leitura da lei é que um centavo de valor ilícito já cassaria. Tentando ser razoável, como é que vou controlar para ver se o sujeito deposita um centavo na minha conta? Mas se ele depositou um dinheirão, 20% do que gastou, você não pode se beneficiar do próprio desinteresse, seria uma figura de cegueira deliberada, você não quis ver. Foi esse o argumento do juiz, tanto que o promotor recorreu em alguns casos para baixar o patamar. O juiz não cassou registro de quem recebeu menos de 20% e o promotor recorreu indagando se o valor não era eloquente. Fizemos uma leitura de cada caso. Em alguns casos, apoiamos o promotor.