Título: Economia influencia eleitor, admite Meirelles
Autor: Meirelles , Henrique
Fonte: Valor Econômico, 26/02/2010, Especial, p. A13

O presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, refuta as críticas de que o jogo eleitoral, para eleger a ministra Dilma Rousseff sucessora do presidente Lula, estaria predominando nas decisões da área econômica. Segundo ele, as decisões do BC são estritamente técnicas e não poderia ser diferente. Para Meirelles, a condução independente e "sem influência política" da política monetária ajuda o candidato governista.

"A inflação na meta e o poder de compra do trabalhador e dos beneficiários dos programas sociais preservado beneficiam o país e a população. Portanto, acabam por beneficiar eleitoralmente [o candidato do governo] ou pelo menos por não prejudicar. Mas o BC não leva isso em consideração. Ele tem uma missão e a cumpre", diz o presidente do BC, nesta entrevista ao Valor.

Meirelles disse que déficits crescentes em transações correntes se tornam, em algum momento, não-financiáveis. Ele acha, no entanto, que o Brasil, por ter um regime de câmbio flutuante e reservas cambiais elevadas, está preparado para enfrentar possíveis ajustes decorrentes da elevação desses déficits.

"As crises do passado eram geradas ou por câmbio controlado, fixo, administrado, com metas de taxa de câmbio, como aliás muitos propõem, ou por câmbio flutuante, mas com reservas muito baixas", explica ele, que se recusou a falar sobre o seu futuro político - se decidir sair candidato ao Senado ou se quiser tentar a vice-presidência da República, na chapa de Dilma, terá que deixar o cargo até 2 de abril.

Valor: Por que o governo decidiu aumentar os compulsórios agora?

Henrique Meirelles: Avaliamos a questão dos compulsórios segundo dois critérios de liquidez: a liquidez do sistema como um todo e a formação de colchões de liquidez por parte das instituições. A existência de compulsórios no Brasil se revelou fundamental na estratégia de enfrentamento da crise financeira internacional.

Valor: Por quê?

Meirelles: Porque permitiu a liberação de compulsórios para o sistema, com o objetivo de irrigar a liquidez, e também porque liberou compulsórios para algumas instituições pequenas e médias, para as quais aquela liquidez era fundamental. Ao decidir elevar os compulsórios, olhamos esses dois critérios. A liquidez do mercado mostrou-se elevada nas últimas semanas e meses e nós temos meios de medir isso através das nossas operações de mercado aberto.

Valor: Estava elevada em que medida?

Meirelles: O número [R$ 71 bilhões] reflete o que julgamos necessário [para recolhimento]. Do ponto de vista de colchão de liquidez, a medida também se justificava, porque concluímos que o nível que tínhamos na crise era adequado, então, decidimos restaurar esse colchão.

Valor: Que riscos essa "liquidez elevada" estava trazendo para a economia?

Meirelles: Excesso de liquidez pode gerar assunção de riscos não adequados por parte das instituições - risco de crédito ou de outros tipos de operações de tesouraria. Tivemos isso claramente demonstrado em diversos países na última crise.

Valor: De que forma?

Meirelles: Um período prolongado de liquidez levou à assunção de riscos por parte das instituições e isso teve consequências bastante problemáticas nas economias dos países ricos. Era uma liquidez generalizada, gerada por três aspectos importantes: inexistência de provisão de liquidez por parte das instituições; índices de alavancagem muito elevados por causa de uma política prudencial muito liberal; taxas básicas de juros muito baixas. Não é disso que estamos falando no Brasil.

Valor: Com essa decisão, o governo desmontou um dos mecanismos que ajudaram a tirar o país da crise. Não é muito cedo?

Meirelles: O momento é absolutamente adequado porque as condições da economia brasileira demonstram isso com clareza. Há uma recuperação forte da demanda doméstica, do consumo privado e público, e, agora, do investimento. Além disso, houve aumento da renda e do crédito. O segredo da saída [dos compulsórios] é este: ele não pode ser prematuro, mas também não pode ser tardio.

Valor: A decisão do compulsório não ajuda a política de juros do BC, uma vez que diminui a liquidez e aumenta o custo do crédito?

Meirelles: São duas coisas diferentes. De um lado, é uma medida que tem efeitos de política monetária. Restrição ou injeção de liquidez tem efeitos monetários. No entanto, a experiência mostra que o mecanismo básico que o BC deve usar para alterar a trajetória futura de inflação é a taxa base de juros [Selic]. É o mecanismo mais eficiente, uma vez que as séries históricas estão mais bem estabelecidas e, portanto, é algo mensurável. Trata-se do instrumento básico de ação de bancos centrais no mundo todo e do BC brasileiro. Não procuramos substituir um mecanismo por outro. Para o controle específico de liquidez em alguns momentos, o recolhimento ou a liberação de compulsório, como fizemos em 2008, é um mecanismo extremamente eficaz. Portanto, a decisão do compulsório teve em vista questões de liquidez. Não há dúvidas, porém, de que ela tem efeitos de política monetária.

Valor: A economia acelerou e a inflação neste início de ano é a mais alta desde 2003. O Brasil está preparado para crescer 5,8%, como projeta o BC para 2010?

Meirelles: Não sabemos qual é o produto potencial do Brasil neste momento. Isso tem sido discutido entre os economistas e, inclusive, foi um tema muito interessante na reunião trimestral que o BC fez em São Paulo [na semana passada] com participantes do mercado. Não houve um consenso, porque ainda não há dados suficientes para analisar qual é o potencial de crescimento da economia hoje e onde vai se estabilizar a partir de 2011. O PIB potencial aumentou bastante entre 2002 e 2008.

Valor: Em quanto?

Meirelles: Nós não falamos de medidas. No processo de recuperação da economia, assim como num determinado ano se operou abaixo do PIB potencial, é possível operar em alguns momentos acima do potencial. A extensão desse período, e se isso é homogêneo nos diversos segmentos da economia, é outro problema. Não se pode fazer esse cálculo de forma simplista. Há uma série de outros fatores que precisam ser analisados.

Valor: O professor Affonso Pastore publicou artigo no Valor, no fim do ano, afirmando que o Brasil está crescendo acima do potencial e que, portanto, o governo já deveria ter começado a desacelerar a demanda agregada. Segundo ele, a disputa eleitoral estaria prevalecendo na gestão da economia. Como o senhor reage a essa crítica?

Meirelles: O BC toma decisões baseado nos seus próprios critérios de avaliação, que são estritamente técnicos. São as projeções de inflação dentro do horizonte de planejamento, no caso, para 2010 e 2011. O BC não se deixa influenciar pelo fato de que uma decisão seria politicamente inadequada, tanto que tomamos decisões politicamente inadequadas no passado várias vezes. Não tomamos também decisões que julgamos prematuras apenas para mostrar que não sofremos influência política. O BC brasileiro já tem uma reputação de credibilidade, um histórico suficientemente estabelecido para ter a liberdade de tomar a decisão na hora certa, para não precisar provar nada a ninguém. A avaliação do BC está nos seus documentos oficiais, sem nenhuma influência política. Agora, é legítimo que os economistas expressem suas opiniões.

Valor: O esperado aumento dos juros não vai prejudicar Dilma Rousseff, candidata do governo à sucessão do presidente Lula?

Meirelles: Não trabalhamos com hipóteses. A nossa experiência mostra que é equivocada a avaliação de que política monetária frouxa e, em consequência, inflação mais elevada trazem algum benefício eleitoral. A história mostra que não. A inflação na meta e o poder de compra do trabalhador e dos beneficiários dos programas sociais preservado beneficiam o país e a população. Portanto, acabam por beneficiar eleitoralmente [o candidato do governo] ou pelo menos não prejudicar. Mas o BC não leva isso em consideração. Ele tem uma missão e a cumpre.

Valor: O déficit em conta corrente está crescendo de forma acelerada. Isso não preocupa?

Meirelles: Um déficit crescente, e a história mostra isso, atinge patamares que se tornam não financiáveis. Em qualquer país. Os mercados reagem a isso, antecipando suas posições nos mercados cambiais, o que afeta as cotações das moedas. No momento em que se configurar a evolução de um déficit em conta corrente que se revele insustentável, haverá um ajuste. Isso é discutido diariamente por milhares de agentes econômicos no mundo inteiro.

Valor: O ajuste não leva a uma crise?

Meirelles: Não houve, desde 1929, ajuste mais drástico nos mercados cambiais do mundo do que o da última crise. O sistema de reservas elevadas e uma política de câmbio flutuante, com um BC atuante, deram condições ao Brasil de enfrentar esse problema com sucesso, sem crise cambial. As crises do passado eram geradas ou por câmbio controlado, fixo, administrado, portanto, com metas de taxa de câmbio, como aliás muitos propõem, ou por câmbio flutuante, mas com reservas muito baixas.

Valor: O custo do ajuste não pode ser a perda de PIB?

Meirelles: Não necessariamente. O Brasil já passou da fase de ter que aumentar juros apenas para controlar fluxos de capitais.

Valor: Mas não tem que aumentar juros para controlar a inflação decorrente da desvalorização do real, provocada por um déficit em conta corrente elevado?

Meirelles: A taxa de câmbio será a taxa que equilibrará os fluxos naquele momento. A política é adequada para isso e ocorre em qualquer lugar do mundo. O câmbio se aprecia e se deprecia. O custo da crise é outro problema. Ele ocorria quando o BC era forçado a aumentar os juros para tentar controlar o fluxo de capital. Já superamos essa fase. O regime de metas preserva o equilíbrio doméstico. O sistema de câmbio flutuante, conjugado com reservas cambiais elevadas, preserva o equilíbrio externo.

Valor: O senhor não teme uma crise?

Meirelles: Não.

Valor: Estudos recentes do FMI sugerem que os países de economia avançada adotem metas de inflação mais altas que a média atual, de 2%, porque, do contrário, não terão espaço para promover política monetária expansionista em períodos de crise. O Fundo está defendendo também que os países adotem controles de capitais. O mundo mudou?

Meirelles: O que um desses estudos diz é que os países que têm meta de inflação em torno de 2% considerem a hipótese de trazer essa meta a 4%. É importante mencionar que a meta brasileira já é de 4,5%. Independentemente de qualquer coisa, essa discussão não se aplica ao Brasil. Em nenhum momento Olivier Blanchard [economista-chefe do FMI, um dos autores do estudo] propõe metas superiores a essa. Muito pelo contrário: em conversas informais, ele tem indicado que seria extremamente negativo um país como o Brasil pensar em alterar o sistema que tem hoje. Mas essa proposta de elevar a meta nos países ricos está sendo objeto de muito questionamento.

Valor: De quem?

Meirelles: Um deles foi feito por Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve [o BC dos Estados Unidos]. Ele fez um pronunciamento público, dizendo que esse expediente de em determinadas situações, por causa de alguns eventos, aumentar a meta de inflação de 2% para 4% seria extremamente deletério para a credibilidade dos bancos centrais. Isso levaria os agentes econômicos a começar a questionar se a meta não poderia ir para 5%, 6%, dependendo das circunstâncias. Isso eliminaria a vantagem mais importante do regime de metas para inflação, que é a coordenação de expectativas. Geraria desconfiança. Bernanke acha muito importante que se mantenha a meta de 2%. Há outros questionamentos.

Valor: Quais?

Meirelles: Na questão do "zero bound" [o limite zero da política de monetária], o problema, em tese, é que, quando a inflação fica abaixo de zero, isto é, negativa, uma deflação, a taxa de juros não tem como cair abaixo de zero. Então, mesmo em momentos em que você precisa de uma política expansionista, e o melhor exemplo é o Japão, o limite do zero impede que isso aconteça. Diversos economistas alegam que isso não se aplica hoje aos EUA ou à Europa, uma vez que a política monetária foi suficientemente agressiva e, conjugada com aspectos de injeção de liquidez nos mercados, não só por meio de redução da taxa de juros mas também via política fiscal, evitou um episódio deflacionário, pelo menos até agora, e portanto isso não justificaria o risco de uma perda grande de eficácia da política monetária. Do ponto de vista da autoridade monetária brasileira, não cabe entrar nessa discussão.

Valor: Essa proposta do FMI não reforça o coro dos que acham que é melhor para o Brasil ter uma inflação mais alta para poder crescer mais?

Meirelles: O argumento de Blanchard não é que inflação maior gere mais crescimento. O argumento dele é que, numa recessão, você poderia ter menos chance de atingir a deflação. Essa discussão não existe nesse nível. Pode existir no Brasil, mas não é a discussão que se coloca no FMI.

Valor: Dado o seu estágio de desenvolvimento, o Brasil não precisaria ter uma inflação maior para poder crescer mais?

Meirelles: Não. Mais inflação gera menos crescimento. Isso é o que mostra a história. Nossa experiência mostra que uma inflação estável e baixa prevaleceu nos últimos anos, levou a uma taxa de crescimento maior, a mais investimento e a uma criação de empregos também muito maior. Inflação baixa e controlada é fundamental para o crescimento.

Valor: O estudo de Blanchard sugere também que os bancos centrais, a partir de agora, deixem de ter como objetivo apenas o controle da inflação. Que opinião o senhor tem sobre isso?

Meirelles: A experiência tem mostrado que o sistema de metas de inflação, como aplicado no Brasil, com intervalo de tolerância, é adequado, juntamente com outras medidas tomadas pelo BC, não só para assegurar a estabilidade econômica e um maior crescimento, como também para enfrentar crises e restrições quando ocorrem. Tanto é verdade que o Brasil foi um dos países mais bem-sucedidos na saída da crise. O sistema de metas mostrou que, em momentos de contração da economia, o BC tem instrumentos para adotar uma política expansionista.