Título: Os povos indígenas não terão condição de sobreviver, diz bispo
Autor: Chiaretti , Daniela
Fonte: Valor Econômico, 09/04/2010, Especial, p. A14

Dom Erwin Krautler, bispo da Prelazia do Xingu, é o nome mais célebre de Altamira, oeste do Pará. Faz 45 anos que chegou da Áustria e aqui ficou. É bispo há 30 anos. Conhece o projeto de Belo Monte desde sua versão com seis barragens e o nome indígena Kararaô. Continua contrário a intervenções do gênero no Xingu mesmo agora, com o projeto de um lago menor e a promessa de investimento na região. "Questiono que desenvolvimento é esse, se é apenas um boom temporário."

Amigo de Dorothy Stang, missionária assassinada no Pará em 2005, dom Erwin também sofreu várias ameaças de morte e vive com escolta de policiais militares há 4 anos. "Tem gente que diz que enquanto este bispo existir, a hidrelétrica não sai. Pensam que tenho um poder imenso", conta. O missionário viu a trajetória desastrosa da construção de hidrelétricas na Amazônia e promessas nunca cumpridas. Preocupa-se com os índios e ribeirinhos, que não terão como viver, diz, com a escassez de água no Xingu e com o inchaço que Altamira pode sofrer com a obra. "Porque não investir na classe média rural da região, fincar o homem na terra ou no ecoturismo deste paraíso?", sugere.

Valor: Como era Altamira quando o sr. chegou?

Erwin Krautler : Era uma cidade de 4 mil habitantes, desligada de tudo. Para sair daqui, só de barco. As pessoas viviam da pesca e da agricultura familiar. E tinha índios. O Xingu é o rio mais indígena do Brasil.

Valor: Como esta região foi mudando?

Krautler: Altamira tem origem nordestina, muita gente veio no boom da borracha. A região passou por dois ciclos de colonização. O primeiro no governo Médici (general Emilio Garrastazu), que queria tirar os nordestinos da seca. Em seguida, veio gente do Paraná, Santa Catarina, Goiás e Espírito Santo. Chegaram com algum capital e muitos viraram fazendeiros. Mas Altamira não cresceu, Altamira inchou.

Valor: Qual o impacto da abertura da Transamazônica?

Krautler: Aqui a desgraça é esta, o total desrespeito à natureza. O pessoal acha que terra beneficiada é aquela que não tem nenhuma árvore e o governo tem culpa nisso. Médici abriu a Transamazônica, dizendo que aqui era uma "terra sem homens" para "homens sem terra" e se esqueceu dos índios e ribeirinhos. Aplaudiu quando tombou uma árvore imensa, dizendo que ali começava o progresso e o desenvolvimento da Amazônia.

Valor: Por que o sr. foi ameaçado de morte?

Krautler: Uma razão é a usina, tem gente que diz que enquanto este bispo existir, a hidrelétrica não sai. Eles pensam que eu tenho um poder imenso. Outra é o meu apoio aos povos indígenas. Tem a Dorothy Stang, que era minha amiga e trabalhava comigo desde 1982. Quando a mataram, exigi das autoridades uma investigação profunda. Este consórcio do crime, que existe, coincide com o de Belo Monte, tem gente ligada direta e indiretamente à morte da irmã. E também tem minha denúncia da exploração sexual de menores aqui, em 2006.

Valor: Desde quando o sr. ouve falar de Belo Monte?

Krautler: Desde os anos 70, o traçado da Transamazônica foi feito em lugares estratégicos. Nos anos 80, se chamava Kararaô, com cinco barragens no Xingu e uma no Iriri. Depois voltou com nome mais bucólico, Belo Monte. Um engenheiro teve a ideia de fazer aqui este canal do Panamá e diminuir o lago. Aqui começa a mentira.

Valor: Qual mentira?

Krautler: Não se fala das pessoas diretamente atingidas. Em Brasília se diz que o presidente Lula quer tirar este povo das palafitas e que se providenciará a elas um Xangri-lá. Palafitas existem, mas a maioria das casas na baixada de Altamira é de alvenaria. São 20 mil a 30 mil pessoas e só 10% em palafitas. Um terço da cidade vai inundar e ninguém tem título de propriedade.

Valor: Quais outros problemas o sr. vê no projeto?

Krautler: Vários. A água estagnada do lago pode ser um viveiro de mosquitos. Já estamos com uma epidemia de dengue e temos malária. Nos 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu não sobrará água, com este paredão que querem colocar aqui. Os povos indígenas de lá não terão condição de sobreviver. Além disso, Belo Monte é só a primeira das barragens que querem fazer.

Valor: O que o sr. quer dizer?

Krautler: Eles dizem vai ser apenas uma barragem, mas o Xingu, que agora está cheio, porque é inverno, baixa muito no verão. O volume de água pode ser mínimo e sem condições de fazer funcionar as turbinas, a não se que se façam outras barragens. Quando estiver tudo apaziguado e o pessoal, conformado, vão dizer "olha, Belo Monte custou tanto dinheiro, mas só funcionam quatro turbinas. Vamos resolver fazendo mais uma barragem lá para cima, e mais outra." E assim todas as áreas indígenas do Xingu serão impactadas.

Valor: Esta suspeita deixa os caiapós...

Krautler: Furiosos. Estão pensando que é só dar espelho aos índios e eles ficam satisfeitos? Eles são inteligentes, sabem o que querem. A outra observação é que, pela Constituição, os povos indígenas têm que ser consultados em situações assim. Os índios não foram ouvidos. Pessoas foram lá dizer a eles o que vai acontecer e isto não é consulta. Consultar é perguntar o que acham.

Valor: O sr. não acredita que a usina possa trazer desenvolvimento à região?

Krautler: Eu pergunto que desenvolvimento é este. Esta usina, se for construída, não é para o brasileiro ter luz em casa, beneficiará apenas as firmas mineradoras. Esta é a experiência que temos com as hidrelétricas da Amazônia. Resolveram os problemas dos atingidos em Balbina ou Tucuruí? Não.

Valor: Como deveria se desenvolver este lugar?

Krautler: O investimento principal seria em saúde e educação. O pessoal da Transamazônica tem como viver muito bem. É preciso asfaltar a estrada, colocar postos de saúde e escolas rurais para fincar o pessoal na terra. Temos uma classe média rural muito boa, por que não investir nisso? Poderia se investir no setor de serviços, no ecoturismo, que gera muito emprego, e fazer de Altamira uma cidade cobiçada.

Valor: Há promessa de dar casas de 60 m2 às pessoas. Não é bom?

Krautler: Pode ser outra besteira. Tem quem está bem com sua roça e os peixes no rio. Por que arrancá-lo de lá e colocá-lo fora de seu ambiente, em uma casa pré-fabricada? Ele vai viver de quê? A prefeitura reconhece que Altamira não tem infraestrutura. O esgoto vai para o rio, o lixo não é tratado, só 20% das casas têm água encanada. (DC)