Título: Venda recorde de veículos compensa redução de IPI
Autor: Olmos , Marli
Fonte: Valor Econômico, 31/03/2010, Brasil, p. A3
Aos 39 anos, a vida de Marcos Appugliese está cada dia melhor. Graças ao seu próprio esforço, conseguiu um emprego de advogado no escritório onde trabalhou como estagiário e depois como auxiliar. Com mais dinheiro no bolso e a melhora nas condições para o crédito, ele deu mais um passo e acaba de comprar seu primeiro carro zero quilômetro. Mas os dias de conforto ainda estão por vir: com o empurrãozinho do governo com a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), sobrou dinheiro para colocar ar-condicionado no carro. O ganho é significativo para quem, agora, precisa enfrentar a estrada, vestindo terno e gravata, para participar de audiências no interior paulista.
Appugliese ainda não retirou o veículo. O advogado começou a semana torcendo para conseguir, na Páscoa, dar uma volta no seu primeiro carro com cheiro de novo. O advogado foi um dos últimos, mas não o único, a aproveitar o incentivo de IPI, que termina hoje.
Aplicada a partir de dezembro de 2008, a isenção do imposto para carros populares e redução de IPI para automóveis maiores foi uma medida anticíclica adotada pelo governo federal para estimular a venda de veículos e ajudar o setor automobilístico. Na ponta do lápis, fez mais do que isso, porque ajudou o caixa dos Estados, que arrecadaram mais Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), embora tenham sido afetados por menos repasses federais.
Em 2009, o país bateu recorde anual de automóveis novos comercializados no mercado nacional, com aumento de 11% sobre 2008 - uma venda de 337,75 mil unidades a mais que no ano anterior. Levando em conta a diferença de arrecadação de IPI sobre automóveis de 2008 para 2009, em valores atualizados pelo IPCA, o governo federal deixou de recolher R$ 4,32 bilhões com o imposto.
Como uma compensação, o aumento nas vendas internas elevou a arrecadação ICMS e do IPVA sobre veículos novos. Em um cálculo conservador, que estima valor de R$ 45 mil para cada carro novo vendido a mais em 2009, o bom desempenho do setor rendeu R$ 2,07 bilhões a mais em ICMS e R$ 230 milhões em IPVA.
O recolhimento adicional de ICMS e IPVA não beneficiou somente os Estados, já que os dois impostos são compartilhados com os municípios. Um quarto da arrecadação de ICMS é dividida com municípios e metade do IPVA vai para a prefeitura na qual o automóvel é emplacado.
Para os governos estaduais e prefeituras, a conta quase fechou em relação aos automóveis novos. Eles receberam um valor menor de transferência dos fundos de participação dos Estados e municípios porque o IPI é um dos impostos que compõe essa arrecadação compartilhada. Levando em conta os fundos de participação e o ressarcimento de IPI para exportação, Estados e municípios ficam com 54% do imposto. Ou seja, levando em conta o efeito da renúncia fiscal de IPI em 2009, Estados e municípios perderam R$ 2,33 bilhões.
Clóvis Panzarini, consultor e ex-coordenador de administração tributária da Fazenda paulista, acredita que, embora tenha tirado uma parte das transferências obrigatórias a Estados e municípios, foi a União que acabou fazendo uma renúncia maior com a política de isenção e redução de IPI. "O aumento de vendas no mercado interno de carros novos resultou em arrecadação de ICMS no ano passado. De IPVA também, embora em escala menor, já que o imposto é recolhido de forma proporcional ao período do ano em que se faz a compra", explica Panzarini.
Em Minas Gerais a venda de veículos fez o recolhimento de ICMS sobre automóveis fechar 2009 com aumento nominal de 2,78% na comparação com o ano anterior. O desempenho do ICMS do setor automotivo foi em sentido inverso à arrecadação total do imposto no Estado, que recuou 1,85%. O efeito, porém, não foi uniforme em todos os Estados. A Fazenda paranaense registrou recuo de 1,83% no ICMS sobre automóveis e elevação de 4,65% na arrecadação total do imposto.
A redução de IPI foi um atrativo bem aproveitado nas concessionárias. Foi no momento da negociação da compra do veículo, conta o advogado Marcos Appugliese, que surgiu a ideia do ar condicionado. Onde já seu viu um advogado que precisa se deslocar de São Paulo para cidades como Piracicaba e Jacareí chegar na audiência todo suado? Apesar de decidido a comprar um popular sem qualquer opcional, a tese lhe pareceu razoável.
Mas foi então que o vendedor lançou seu argumento mais sedutor: o valor do ar condicionado equivalia ao desconto do IPI. Se fechasse o negócio antes de o imposto subir poderia incluir no preço de um carro básico não apenas ar condicionado, como ainda o conforto de uma direção hidráulica.
Até aqui, Appugliese só conseguia comprar carros usados. Sempre que podia, a cada cinco anos, em média, trocava o automóvel por outro menos velho. Assim foi até chegar no Corsa 98, sua despedida do mercado dos automóveis que pertenceram a outros. Desta vez, porém, três coisas o levaram para o balcão dos zero quilômetro: a melhora de salário, a oportunidade de financiar o veículo em 60 prestações e o atrativo do incentivo fiscal. Como faz a média dos brasileiros, lembra, acabou deixando para a última hora, na esperança até de que o governo prorrogasse o incentivo uma vez mais.
O custo com o financiamento do carro vai subir bem. Appugliese sai de uma prestação em torno de R$ 250, relativa ao antigo carro, para uma de R$ 780. Foi com as perspectivas com o novo emprego, porém, que ele criou coragem para mudar. Com a maior parte da clientela em cidades do interior, o advogado concluiu que precisava de um carro melhor para enfrentar a estrada. Fez as contas do custo de manutenção do seu último veículo - ele chegou a gastar até R$ 400 por mês com oficina - e espera ficar três anos longe do mecânica. Esse é o tempo de garantia num modelo zero quilômetro. Além disso, entusiasma-se, agora também será possível abastecer o tanque com álcool. "E agora estou assumindo a dívida de um carro que não foi de mais ninguém", diz.
Fechado o negócio, o advogado ficou com o Gol de R$ 33,5 mil dando suas economias de R$ 5 mil como entrada. Ele está contente. O preço desse modelo vai ficar próximo de R$ 36 mil com o fim do desconto no IPI. Falta agora vender o Corsa 98 para aliviar as prestações.
Ayrton Santos, consultor de varejo automotivo da agência MSantos, especialista no setor automotivo, costuma aproveitar os feirões de carros para analisar o comportamento do consumidor. Já faz três anos que ele faz pesquisa. Mas, desta vez, o resultado chamou a sua atenção. A quantidade de pessoas comprando carro novo pela primeira vez passou da metade. A amostra indicou 53,7% (este mês) ante 43% da pesquisa que ele mesmo fez em novembro de 2007. Outro dado: 68% dos entrevistados declararam renda entre R$ 1,5 mil e R$ 3 mil. "O esforço conjunto de marketing das montadoras, bancos e concessionárias, somado ao final do benefício do desconto do IPI e à facilidade do crédito fácil e farto, têm alavancado esse aquecimento", diz Santos. Ele lembra a entrada de brasileiros, inseridos na nova classe média. "Por isso, nunca se anunciou tanto e nunca se vendeu tanto", diz.
A indústria automobilística encerrará março com recorde histórico de vendas. O total de veículos licenciados até o dia 29 - 299,4 mil - indica que o mercado no último mês de IPI reduzido chegará a 330 mil unidades, ultrapassando o recorde anterior 308,1 mil, em setembro de 2009, quando o governo decidiu prorrogar o benefício.