Título: Por um próximo passo na política monetária
Autor: Tenani , Paulo
Fonte: Valor Econômico, 16/04/2010, Opinião, p. A14
Em seu livro de 1848, "Princípios de Economia Política", John Stuart Mill examinou os efeitos da moeda na economia e concluiu que "não pode haver coisa intrinsecamente mais insignificante em uma sociedade econômica do que a moeda; a não ser como uma invenção para poupar tempo e trabalho. Ela é um maquinário que permite fazer com maior rapidez e comodidade o que seria feito mesmo sem ela, apesar de com menor rapidez e mais trabalho; e, como com muitos outros tipos de maquinário, a moeda só exerce uma influência distinta e independente quando não está funcionando".
Essa visão de Stuart Mill sobre a moeda, já citada por diversos autores, ilustra dois princípios fundamentais: 1) no longo prazo, a moeda é "neutra" no sentido de não afetar as variáveis reais da economia - mas somente as monetárias; 2) o principal papel da política monetária é impedir que a moeda seja uma fonte de instabilidade econômica. Esses dois princípios, entre outros, durante a década de 90, formaram a base do regime de metas de inflação, que hoje é usado como âncora nominal em mais de 20 países desenvolvidos e emergentes. Porém, nos últimos 10 anos, algo se perdeu dos ensinamentos de Mill.
Por exemplo, o princípio da neutralidade - ou "insignificância" da moeda como diria Mill- parece ter sido substituído por uma crença quase mágica no poder da política monetária em afetar tanto a taxa de crescimento quanto o nível de emprego. Isso é bastante evidente nos Estados Unidos, com suas variantes da chamada "Greenspan put" - aquela opção implícita de que, no caso de crise, o FED sempre cortará os juros para resgatar a economia americana . Além do mais, o próprio objetivo duplo do FED, que em adição a perseguir estabilidade de preços objetiva também manter o pleno emprego, sugere uma confiança na política monetária que vai muito mais longe do que ela pode realmente entregar.
Alguns números são ilustrativos. Entre 1999 e 2009, o estoque de M2 - um agregado monetário que engloba moeda, poupança, depósitos à vista e a prazo - aumentou substancialmente acima dos PIBs nominais tanto nos Estados Unidos (84% e 51%), quanto no Reino Unido (155% e 49%) e região do euro (100% e 37%).
O ativismo monetário do período foi também surpreendente. A volatilidade anual do M2 atingiu 39% de sua média anual de crescimento nos Estados Unidos, 94% no Reino Unido e 38.5% na região do euro. Ou seja, entre 1999 e 2009, os bancos centrais dos Estados Unidos, Inglaterra e Europa, implementaram uma política monetária ativista e expansiva, daquelas de deixar o prof. Milton Friedman - que ao fim dos anos 60 propôs uma expansão monetária constante à taxa de 2% ao ano - roxo de decepção.
Bem, basta unirmos esse descontrole monetário ao efeito deflacionário da China para derivarmos inflação no preço dos ativos, não? Lembram-se do efeito Pigou? Ou seja, na verdade, nos últimos dez anos, nos países desenvolvidos, a política monetária talvez tenha sido uma fonte de instabilidade econômica, "só exercendo sua influência distinta e independente por não estar funcionando".
Mas tudo isto é velharia, diria um diretor de banco central contemporâneo. É óbvio que, se o instrumento de política monetária é a taxa de juros, os agregados monetários terão que flutuar? E quem é que ainda se importa em olhar para agregados monetários? insistiria tal banqueiro central. Pois é justamente nesse tipo de visão que reside o problema. Em primeiro lugar, nada no regime de metas de inflação sugere que a taxa de juros é o melhor instrumento de política monetária. Essa é uma ideia tipicamente americana e britânica, baseada em um argumento de instabilidade da demanda por moeda - que parece mais depender dos compulsórios extremamente baixos desses países do que de qualquer outra coisa. Na zona do euro, onde a demanda por moeda seria mais estável, o banco central supostamente controla também os agregados monetários - como fizeram com muito sucesso, e durante décadas, o Bundesbank e o Banco Central Suíço. Mas com uma expansão monetária de 100% desde 1999 e uma volatilidade do M2 próxima da americana, o Banco Central Europeu talvez tenha colocado a experiência do Bundesbank de lado.
Uma pena - para a Europa!
Em segundo lugar, é verdade que uma política monetária que fixe a taxa de juros irá causar oscilações no estoque de moeda. Mas é isso que queremos? Parafraseando Milton Friedman "a inflação", e aqui eu acrescentaria "ou de bens ou de ativos", "é toda vez e sempre um fenômeno monetário". Portanto, em linguajar técnico, a política de primeiro ótimo para conter um fenômeno monetário é "toda vez e sempre" o controle monetário e não uma política de juros. Usar a taxa de juros, como virou moda entre os principais bancos centrais, não apenas é segundo ótimo - com consequentes distorções nas volatilidades do câmbio e inflação - como também pode causar inflação no preço dos ativos.
Para o Brasil, cabe um ensinamento. Com depósitos compulsórios elevados e inflação sob controle, não é mais de se esperar instabilidade na demanda por moeda. Nossa realidade é, portanto, bastante diferente da americana e britânica. Nesse sentido, talvez seja hora de um próximo passo. A primeira fase do atual sistema monetário brasileiro foi a âncora cambial - abandonada em 1999 com a desvalorização do Real. A segunda foi o regime de metas de inflação, com as metas perseguidas por política de juros. Agora, com a inflação sob controle e a demanda por moeda estável, talvez seja hora de gradativamente evoluir para metas monetárias - e um consequente menor ativismo nos juros. Afinal, como instrumento de política monetária, a política de juros pode até ter se mostrado compatível com estabilidade nos preços dos bens - mas não o foi com estabilidade no preço dos ativos. Nesse sentido, as lições tiradas do ativismo de juros dos principais bancos centrais desenvolvidos não devem ser esquecidas: elas resultaram em uma expansão monetária volátil e excessiva que, ao final, transformaram a política monetária numa fonte de instabilidade econômica.
Paulo Tenani é sócio da Pragma Patrimônio e professor de Finanças Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).