Título: Câmbio: lições da história, tangos, aranhas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 25/03/2010, Opinião, p. A14

Aolongo dos últimos anos vem sendo realizado um amplo debate sobre acondução da política cambial no Brasil. Recentemente, o debateintensificou-se em função das declarações do presidente do PSDB sobrepossíveis mudanças que seriam feitas na política cambial caso o partidoeleja o próximo presidente. Um dos aspectos mais marcantes desse debateé a insistência de um grupo de economistas conservadores em afirmar quea taxa de câmbio deve ser determinada exclusivamente a partir das"livres forças do mercado", ficando o Banco Central restrito a acomodarmovimentos especulativos.

Oproblema desse argumento é que historicamente a taxa de câmbio, dadasua importância, é alvo de ações governamentais, particularmente depaíses desenvolvidos, que na prática impedem que o mercado determine ataxa de câmbio. A história econômica contemporânea é rica em exemplosda importância dispensada pelas nações ao comportamento do câmbio e doseu uso complementar às estratégias de crescimento.

Nasdécadas de 1920 e 1930 diversas nações, hoje desenvolvidas,desvalorizaram suas moedas como forma de obter ganhos no comérciointernacional. Essas práticas ficaram conhecidas na literaturaeconômica como "política de empobrecimento da vizinhança" e sãoexemplos concretos da utilização do câmbio com objetivo explícito deampliar as exportações e promover o crescimento. Nesse período autilização generalizada da estratégia culminou em práticas agressivasno comércio internacional. Disputas econômicas somaram-se a disputaspolíticas com a eclosão de guerras. Os países passaram a administrarsuas taxas de câmbio como resposta ao período de liberalizaçãofinanceira, comercial e globalização que vigorou nos anos 1840-1915. AGrã-Bretanha, por exemplo, adotou a partir de 1932 uma política dedesvalorização administrada da libra, como complemento à políticamacroeconômica voltada ao crescimento. A mesma estratégia foi seguidapelos EUA em 1933.

Noperíodo seguinte, após 1948, durante a era de Bretton Woods, encerradaem 1973, os países desenvolvidos coordenaram suas políticas cambiaiscom o objetivo de manter as moedas parcialmente fixas e eliminarvolatilidade e risco cambial, obtendo condições necessárias paraimpulsionar o comércio internacional e o desenvolvimento. Esse períodode câmbio coordenado foi uma resposta às instáveis décadas de 1920 e1930.

No ciclo atual,pós-Bretton Woods, mesmo a adoção de regimes de câmbio flutuante nãotem evitado que países interfiram no mecanismo de mercado com aintenção de administrar as taxas. E diversos são os exemplos. Em 1979,a brutal elevação da taxa de juros norte-americana tinha como objetivo,além de amenizar as pressões inflacionárias, promover a atração decapitais e reverter a tendência de desvalorização do dólar verificadaentre 1973 e 1979.

Apósas crises cambiais que assolaram os países emergentes na década de 1990tem-se observado a ampla utilização - sobretudo nos países asiáticos -da estratégia de crescimento puxado pelas exportações mantidas porcâmbio desvalorizado. A política cambial chinesa, num contexto em queas forças de mercado deveriam conduzir para sua valorização, é oexemplo mais bem acabado. A crise que abalou a economia mundial, aindaque tenha aumentado a importância do mercado doméstico para a China,não alterou sua estratégia de forte intervenção com intuito de impedira natural valorização do yuan.

Afim de reduzir o imenso desequilíbrio externo, os EUA têm adotado nosúltimos anos uma estratégia de desvalorização do dólar como forma dedefesa à política cambial chinesa. Num gráfico temporal, as duas moedasdescrevem trajetórias idênticas, como se estivessem dançando um tango.

Longede fornecerem um retrato completo do tema, os exemplos elencadosevidenciam que a taxa de câmbio na prática não é determinadaexclusivamente pelo livre mecanismo de mercado. Pelo contrário, osexemplos alertam que a gestão da política cambial é historicamente umelemento central da política econômica das nações.

Seriamuito mais salutar, seja com o governo que está saindo, seja com o quevai entrar (ou continuar), que o país adotasse uma políticamacroeconômica e em especial uma política cambial baseada mais nopragmatismo do que na economia pura. A determinação da taxa de câmbionão é apenas uma questão de teoria econômica e de livre mercado. Elanão depende apenas das leis de oferta e procura de divisas, mas tambémdo que os outros países estão fazendo. Em matéria de câmbio os sinaisde mercado importam, mas não são tudo.

Mesmocom as intervenções recentes via IOF e compra de divisas o Brasilpermanece com uma política acomodatícia. Isso pode conduzir, como defato está, ao pior resultado: enquanto as forças livres de mercadovalorizam a moeda brasileira, EUA, China e diversos outros paísesdesvalorizam as suas, empurrando o Brasil para a "maldição dascommodities". O mercado brasileiro não está isolado dos demais mercadoscambiais administrados do mundo. O país, assim, é vítima de sua purezateórica e refém de interesses muito específicos, legítimos apenas doseu ponto de vista individual, para quem o câmbio valorizado é umabênção.

A políticacambial no Brasil deve mudar não apenas por motivos teóricos (nãoabordados neste artigo), mas por razões práticas evidentes e deveseguir um curso semelhante à seguinte passagem de um pronunciamento deObama em 05/08/2009, quando afirmou: "A história deveria ser nossoguia". Em termos práticos isso significa que o melhor para o país é umsistema de cambio flutuante administrado, cuja flutuação se dê em tornode uma taxa média industrialmente competitiva que viabilize aexportação de manufaturados de conteúdo tecnológico médio e alto. O queo país não pode fazer é deixar o câmbio exclusivamente ao "mercado", noexato momento em que importantes nações estão fazendo o contrário.Deixar tudo ao "mercado" daqui é como fugir da picada da aranha pulandona cova dos leões.

Marcelo Curado é doutor em Economia pela Unicamp e vice-diretor do setor de Ciências Sociais Aplicadas da UFPR