Título: Dinheiro fácil que banca Brasília lastreia corrupção
Autor: Costa, Raymundo; Basile, Juliano
Fonte: Valor Econômico, 19/04/2010, Política, p. A9

de Brasília

Há exatos 50 anos, Juscelino Kubitschek reuniu 5 mil pessoas no salão nobre do Palácio da Alvorada em uma festa para celebrar o futuro. Era a véspera da inauguração de Brasília, cujo aniversário comemora-se na quarta-feira, dia 21, sem motivos para grandes festejos. Em meio século de existência, a capital que transpirava modernidade e otimismo, sentimentos síntese do fim dos anos 50 e início dos 60, produziu uma elite omissa e foi capturada pelo que há de mais atrasado na política, como prova a crise que atravessa. Até a semana passada, seu governador se achava preso numa cela da Polícia Federal, acusado de chefiar um esquema sistêmico de corrupção. Hoje, como ontem, Brasília é contestada, não mais como nova sede da República - " jornada do ontem para o amanhã " , na frase certeira de Aldous Huxley, autor de " Admirável Mundo Novo " . Brasília cumpriu a função de integrar um país que vivia de costas para o interior - para se ir do Rio de Janeiro para Belém (PA), nos anos 60, só era possível pela costa litorânea. A construção da capital, em tempo recorde, tingida de cores épicas, encheu de orgulho a alma brasileira. Ajudou a moldar o caráter nacional. Mas não expiou o pecado original (os chutes sobre o custo da construção de Brasília variam na faixa do bilhão de dólares, a preços de 1960), e ao contrário, aos poucos transformou a capital da esperança na capital de privilégios que custam caro ao contribuinte, inclusive o brasiliense, que cada vez mais demonstra ter dúvidas em continuar bancando o que é desperdício na capital. E não é pouco. Ainda hoje é a União que banca o governo local, apesar da autonomia política concedida ao Distrito Federal pela Constituição de 1988. Na prática, cada morador de Brasília custa cerca de R$ 3,5 mil anuais ao contribuinte brasileiro. Esta é a receita per capita do Distrito Federal, quando se leva em consideração apenas o que é despejado na cidade por meio do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF). Se a conta levar em consideração outras transferência e a receita própria, esse valor foi de R$ 7,1 mil no ano de 2008, a maior do país. " Trata-se de valor 42% maior que o do segundo colocado no banking (Rondônia) e 121% superior à do Estado mais rico da federação (São Paulo) " , explicam Marcos Mendes e Marcos Kohler, consultores legislativos do Senado, em estudo que relaciona a corrupção e o dinheiro fácil - que " cai do céu " - a que têm acesso os governantes locais. Brasília ganhou autonomia política plena sem ter autonomia financeira correspondente. Mas não é uma jabuticaba: as cidades administrativas, mundo afora, em geral não dispõem de autossuficiência tributária, e os governos fazem exatamente como o governo brasileiro e financiam total ou parcialmente seus distritos administrativos. O problema de Brasília é o excesso, o desperdício, o privilégio. Capital dos Estados Unidos, Washington, não tem plena gestão administrativa, tem direitos políticos restritos e arrecada aproximadamente 70% da sua receita orçamentária. Brasília é o avesso. " O FCDF representa 74% da arrecadação total " , diz Marcos Mendes. Uma aberração, sobretudo quando se leva em conta que o FCDF é um dinheiro usado para pagar a segurança pública e parte das despesas da saúde e educação, mas além dele o DF recebe também o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e é a União quem paga a folha de pessoal do ministério público (R$ 316 milhões) e da Justiça locais (R$ 1,2 bilhão, nas contas de Mendes). A criação do FCDF já foi uma tentativa do governo federal para se ver livre da imprevisibilidade da conta espetada a cada ano por Brasília no Tesouro. Até 2003, reivindicações de aumentos salariais eram simplesmente atendidas pelo governo de plantão, que em seguida mandava a corporação respectiva cobrar da União o reajuste. Aprovado no governo FHC, o fundo foi posto em prática no governo Lula, que teve momentos de arrecadação recordes - aumentos esses transferidos para o Distrito Federal. O incremento do FCDF, desde 2003, apenas em 2008 ficou abaixo dos 10%. Em geral esteve entre 15% e 18% (ver tabela). O efeito colateral é " o agravamento de distorções no pacto federativo brasileiro " como diz Oliveira Alves Pereira Filho, autor de uma detalhada radiografia do FCDF encadernada em uma monografia que ano passado ganhou o 14º Prêmio do Tesouro Nacional. Pereira Filho também organizou o ranking pelo qual se fica sabendo a posição dos recursos recebidos pelo GDF em confronto com os grandes sistemas. De acordo com a monografia, de 1981 a 1994 e de 1995 a 2002, respectivamente, o fundo repassou para o DF as quantias de R$ 2 bilhões e R$ 4 bilhões, em valores constantes de 2008. Já no período 2003-2010, já durante a vigência do FCDF, a média dos valores repassados continuou crescendo, passando a se situar na casa dos R$ 6 bilhões. Estes valores " só são menores, em termos absolutos, do que os destinados aos fundos de participação dos municípios (FPM) e Estados (FPE), ao Sistema Único de Saúde, ao Fundeb, às compensações energéticas (recursos hídricos e minerais, tratado de Itaipu e royalties de petróleo e gás natural) e às transferências voluntárias " , diz Oliveira Pereira. Superam, por outro lado, " as dotações de transferências consignadas a Estados e municípios pelo salário-educação, compensações às exportações (Lei Kandir), IPI Exportação, Cide, ITR e IOF " . O detalhe é que as transferência recebidas pelos demais Estados são partilhadas com todos os Estados e municípios, inclusive o próprio Distrito Federal. Os exemplos ocorrem em série. Os R$ 7,6 bilhões que o GDF estima receber este ano é uma quantia igual a todas as despesas primárias da Presidência da República, duas vezes a da Câmara dos Deputados e bem maior que a de uma dezena de ministérios. E o que é pior: o governo do GDF gasta mal o dinheiro fácil que recebe - é a maior despesa per capita do país (ver tabela) Outra comparação: o Pronasci prevê gastar R$ 6,7 bilhões até o fim de 2012, em todo o país, praticamente a mesma quantia destinada ao FCDF em 2008 - neste ano, R$ 3,5 bilhões enquanto a União destinou apenas ao FCDF em 2008 R$ 6,6 bilhões em valores correntes, desses R$ 3,5 bilhões foram destinados para os policiais militares, civis e corpo de bombeiros do Distrito Federal. Não foi à toa, portanto, que policiais militares e bombeiros de todo o país tumultuaram a rotina de Brasília com uma manifestação na qual reivindicavam a equiparação de seus vencimentos aos dos colegas do DF. O salário inicial de um oficial da PM é de R$ 11,7 mil; o de praça, começa nos R$ 2,5 mil. O " dinheiro que cai do céu " torna menos transparente o controle estatal e relativiza, segundo Oliveira Pereira, " o verdadeiro custo econômico dos serviços públicos " , o que " pode ensejar gastos desnecessários e servidores públicos com médias salariais incompatíveis com o restante dos Estados e municípios ". A conclusão de Pereira é a mesma a que haviam chegado outros ensaístas, mas ele ameniza nas palavras: " É um incentivo econômico perverso, onde os gestores distritais podem não se empenhar nos níveis desejáveis pela realização de um ajuste fiscal em sua política de pessoal, uma vez que os ganhos políticos do apoio à burocracia distrital (eleitores que agem sempre em busca de maximizar seus rendimentos) podem ser atrativos e os custos desse posicionamento recairiam integralmente ou parcialmente sobre o pagador dos reajustes, no caso a União " . De maneira crua: é um incentivo à corrupção. Os números parecem provar que o dinheiro fácil seduziu a elite política do DF. Entre 2006 e 2009, o governo federal enviou R$ 27,8 bilhões para Brasília. Em apenas três meses de análises (entre dezembro de 2009 e março deste ano), a Controladoria- -Geral da União (CGU) identificou 177 irregularidades na utilização dessa verba por 21 órgãos locais. Isso não significa que o GDF cometeu crime. São indícios de mau uso do dinheiro. São casos de uso fora do padrão, suspeitas de favorecimento em licitações e desvio direto de verbas. As suspeitas de mau uso recaem em três grandes áreas: obras, saúde e educação. Nas obras do metrô, que também recebeu e recebe dinheiro da União, a CGU pediu o ressarcimento de R$ 11,7 milhões, que teriam sido desviados na construção do trecho Taguatinga-Ceilândia (duas das mais populosas cidades satélites), e investiga um possível sobrepreço num contrato de R$ 328 milhões para a aquisição de trens e sistemas. Na saúde, a CGU encontrou R$ 320 milhões paralisados nos cofres do Banco de Brasília (BRB). A população de Brasília há muito reclama de carências na Saúde, mas o GDF deixou essa quantia parada no BRB sem justificativas claras. Pode ser para fazer caixa para o banco ou mesmo para abrir novas licitações. Exemplo: o GDF contratou com dispensa de licitação uma empresa terceirizada para fazer o atendimento de doentes em ambulâncias, ao custo de R$ 13 milhões, por seis meses. A CGU pergunta o motivo de ter pago esse dinheiro em ambulâncias, se havia verba no BRB para tanto. O cinquentenário é a encruzilhada. Até agora a cidade conseguiu escapar de uma intervenção federal, mas a falência da elite política que se formou nesses 50 anos parece decretada: ela não foi capaz, até agora, de formular uma saída para a crise política que há mais de dois meses consome Brasília - 61 foram os dias que o ex-governador passou na cadeia. Mas o apodrecimento da política local não é uma exclusividade de Brasília, os erros com os quais convive podem ser corrigidos e a cidade será sempre o símbolo, o centro do " cruzeiro de estradas " que integrou o país.