Título: Belo Monte não deve pacificar Altamira
Autor: Chiaretti, Daniela
Fonte: Valor Econômico, 19/04/2010, Especial, p. A14

Que Altamira precisa de um projeto de desenvolvimento, ninguém discorda. Mas o apelido do município de 100 mil habitantes, " Princesinha do Xingu " , soa sarcástico quando se dá uma olhadela na cidade de infraestrutura inexistente. O que Altamira tem de bonito é o rio, embora a disposição das mesas nos botecos da orla, curiosamente, dê as costas ao Xingu. A polêmica em torno a como melhorar a região acende se as fichas são colocadas na hidrelétrica de Belo Monte. Basta uma caminhada pela 7 de Setembro, a rua comercial da cidade, ou pelos armazéns do porto, para sentir que a simpatia à usina de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões não é unanimidade. Nos vidros da ótica A Turmalina, um adesivo verde ( " Sou a favor de Belo Monte " ) escancara a predileção ao projeto. " Claro que sou a favor! Altamira precisa da usina " , entusiasma-se o cearense Genival Alves da Costa, morador na cidade há 30 anos. " E olha que tenho dois lotes na região que vai ser alagada e que estão produzindo, um tem cacau, o outro, pasto. " A mulher ao seu lado no balcão escuta o que ele diz, faz cara feia, dá de ombros e some pela porta dos fundos. " Lucineide é minha esposa. Ela é contra " , explica. " É muito religiosa. Tem as ideias de Dom Erwin na cabeça " , continua, citando o bispo da Prelazia do Xingu, uma das mais fortes vozes de oposição à hidrelétrica. Em Altamira, Belo Monte divide famílias. Seus quase 100 mil habitantes se alinham em três frentes. Há o grupo do que são claramente a favor, o dos que estão radicalmente contra e a maioria da população que não faz ideia do que pensar. Nos dias que antecedem o leilão, contam-se histórias de um gaúcho que alugou um prédio para montar a segunda churrascaria da cidade, antecipando-se à concorrência, aos clientes que ainda não existem e à própria decisão de se fazer a usina. Um empresário já contraiu empréstimo de R$ 700 mil para construir um prédio apostando no boom econômico da hidrelétrica que ainda é de papel. " Ao contrário do que as pessoas pensam, o leilão não irá celebrar o final do embate " , diz Ana Paula Souza, coordenadora da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), que existe há 20 anos e é a principal entidade dos movimentos sociais na Transamazônica. " Aqui há um movimento de resistência à usina há mais de 30 anos. Jamais será como Tucuruí. Esta luta contra Belo Monte está longe de acabar. " Costa, o dono da ótica, diz que se a hidrelétrica não sair, está " programado para ir embora para Goiânia " , onde mora um filho. O comerciante parece ter todas as respostas. " A usina vai trazer asfalto e benefícios " , pontua, dizendo que Altamira " caiu depois da morte da irmã Dorothy " . Os acusados de serem os mandantes do assassinato da missionária Dorothy Stang viviam na cidade, lembra. O declínio de Altamira, acredita, aconteceu porque a região teria ficado na mira da fiscalização federal, como a operação que fechou madeireiras ilegais. " A represa está longe daqui, o efeito vai ser o de uma enchente forte do rio " , assegura. Mas o que vai acontecer aos araras, jurunas e caiapós que vivem nos 100 quilômetros de rio onde a água vai diminuir? " Não tem índio na Volta Grande " , irrita-se. Para ele, o único risco de Belo Monte é repetir Tucuruí e " não dar assistência ao pessoal alagado. " Altamira é um lugar fora da lógica do Sul e Sudeste. Fica a 380 quilômetros de Tucuruí, mas só em 1998 começou a receber energia elétrica da usina inaugurada 14 anos antes. Depois das operações do Ibama e da Polícia Federal nas madeireiras, a elite local puxou uma grande passeata - contra a polícia. Enviar e-mail é teste de paciência, mas à noite é comum ver moradores com laptops nas cadeiras de plástico da orla, aproveitando a melhor conexão da cidade. Há tráfego constante de caminhonetes L-200 ao lado de carros velhos e carroças puxadas por jegues. A demanda por médicos é enorme: os que atendem em Altamira podem ganhar R$ 30 mil ao mês. " Altamira é uma fronteira " , diz Ana Paula, da FVPP. " A trajetória desta região é marcada pelo saque das riquezas " , continua. Primeiro foi o ouro, depois a madeira, agora é a água, lista. " Gente que defende a obra às vezes tem este mesmo discurso predador. " Na opinião dela, para receber um empreendimento da magnitude de Belo Monte, que pode dobrar a população da cidade, a região teria que estar razoavelmente organizada. Ela teme o caos urbano que se anuncia. " O risco é de a obra trazer ainda mais problemas sociais para o próprio Estado. " A tentativa da fundação é descolar o debate de Belo Monte da necessidade de desenvolvimento da região. " A proposta da usina não tem nada a ver com a intenção de fazer algo para esta área. Se o rio não estivesse aqui, nem ligariam para a gente. " É a posição contrária à de seu marido. Rainério Meireles da Silva, coordenador do campus da Universidade Federal do Pará em Altamira, é um entusiasta da hidrelétrica. " Belo Monte é um grande projeto se for estabelecido dentro de uma estratégia de desenvolvimento regional. E eu penso que isso é possível de ser feito " , argumenta. " Se pudermos aplicar R$ 50 milhões a R$ 100 milhões em educação, ganharemos muito " , diz, referindo-se aos recursos para fazer decolar o Plano de Desenvolvimento Regional que devem estar acoplados à obra. Ele chegou a Altamira em 2002 e vê mudanças positivas na cidade no período. No campus, à época, eram apenas 12 professores e 400 alunos; hoje são 100 docentes e 1.300 alunos. Na cidade, os humores em relação a Belo Monte oscilam à medida em que se ande em direção aos lugares mais baixos. Nas palafitas que ficam às margens dos igarapés Altamira e Ambé, cerca de 16 mil pessoas, segundo o projeto, terão que se mudar porque as casas serão alagadas. Luis Xipaia, liderança de índios que vivem na cidade há muito tempo, mora às margens de um dos igarapés. " O PAC, para nós índios, é um programa de destruição " , diz. " Virão muitos aventureiros à nossa região, aumentará a criminalidade. Não é bom. " No porto, em uma das balsas que ficam ancoradas e funcionam como bares ou mercados, o funcionário Robson Alves da Silva diz que não é a favor da obra. " Vai afetar muito os ribeirinhos. E acabar com as praias, que é nosso lazer no verão. Aqui dá movimento direto, vem muita gente das cidades vizinhas. " Na rua de comércio, Pedro Soares, gerente de uma das lojas Armazém Paraíba, nota que as vendas de colchões, fogões e geladeiras aumentaram 20% a 25% em relação ao mesmo período de 2009. " São pessoas de Belém, de São Paulo, de Minas " , diz. A procura por móveis de escritório é tanta que ele sugeriu à direção da empresa que estude trabalhar com esta linha de produtos. " Sou a favor da usina, mas tenho medo. E quando acabar a construção, como vai ficar? "