Título: A longa disputa comercial do algodão na OMC
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/03/2010, Opinião, p. A12

Hoje, disputas comerciais são fatos frequentes. A Organização Mundial do Comércio (OMC) registra 405 contenciosos nos seus 15 anos de existência, dos quais mais da metade teve como demandante ou demandado os países desenvolvidos. Os EUA recorreram 94 vezes ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC e foram questionados por outros países em outros 109 casos. A União Europeia pediu a abertura de 81 procedimentos e foi demandada em 67. O Brasil, questionado em 14 casos, recorreu 24 vezes ao OSC e sempre cumpriu com as determinações do órgão.

A maior parte das disputas comerciais se resolve antes de chegar às etapas da retaliação, se o país condenado por práticas ilegais fizer os ajustes necessários em sua legislação sem que a parte recorrente precise retaliar.

A retaliação é o último recurso para resolver controvérsias de cumprimento das regras multilaterais a que os países membros se obrigaram. Ao longo do processo - que comporta seis etapas de análise distintas antes da autorização de medidas de retaliação - há diversas oportunidades para que o país demandado reveja as práticas questionadas ou para que se construa solução mutuamente satisfatória entre os litigantes.

Exatamente por essa ampla oportunidade de se evitar retaliação comercial, ela é rara e muitos contenciosos se encerram ainda na fase de consultas ou ao longo do procedimento. Por isso, em apenas oito casos a OMC autorizou retaliações, e dessas, apenas quatro foram efetivamente aplicadas.

O Brasil pode se tornar o quinto país membro da OMC a retaliar um parceiro comercial, os Estados Unidos, condenados pelo órgão multilateral pelos subsídios dados a seus produtores de algodão e pela distorção que estes causam ao comércio.

A autorização para que o Brasil adote contramedidas resulta de longo processo, iniciado em setembro de 2002. Ressalte-se que a decisão final que considerou ilegais esses subsídios é de 2005. Houve painéis de implementação, painéis de apelação e recursos de arbitragem. O procedimento de arbitragem foi concluído e o Brasil foi formalmente autorizado a aplicar contramedidas aos EUA, em 19 de novembro de 2009.

Esse procedimento de mais de sete anos resultou na condenação dos EUA em todas as etapas. Durante esse período, não houve revisão satisfatória dos incentivos condenados da Lei Agrícola norte-americana .

Assim, no procedimento de arbitragem, definiu-se fórmula para calcular o total de retaliação anual a que o Brasil tem direito, a qual aplicada para o ano-base de 2008 resultou em US$ 829 milhões. Para aplicar a retaliação, os árbitros reconheceram que as circunstâncias são suficientemente sérias para justificar contramedidas em outras áreas, além da retaliação em bens.

Autorizaram a "retaliação cruzada" (em propriedade intelectual e serviços), desde que o Brasil ultrapassasse determinado valor (gatilho) na retaliação em bens, calculado em US$ 561 milhões. O valor da retaliação cruzada é, portanto, de US$ 268 milhões.

A retaliação é a última das opções consideradas pelo governo brasileiro para resolver o atual contencioso, pois seu primeiro objetivo é o de que os EUA retirem os incentivos conferidos aos seus produtores de algodão, pois causam prejuízos aos produtores brasileiros.

Esses subsídios ilegais deprimem os preços do produto no mercado internacional e causam enormes danos aos demais países produtores de algodão, a exemplo das economias de menor desenvolvimento da África.

A disposição do governo brasileiro para negociar e a busca de um acordo que também possa beneficiar outros países de menor desenvolvimento têm sido reiteradamente manifestada ao longo do processo.

Mas, sem um movimento dos EUA para atender às determinações da OMC, o governo brasileiro deliberou por iniciar o processo de retaliação. Buscando atuar em sintonia com os interesses do setor produtivo brasileiro, para reduzir eventuais impactos negativos do processo sobre o mercado doméstico, foram realizadas consultas públicas sobre lista de mercadorias norte-americanas sujeitas à aplicação de medidas. Com isso, se chegou a 102 mercadorias, divulgadas pela Resolução Camex nº 15, de 5 de março, que terão suas alíquotas do imposto de importação majoradas a partir de 7 de abril.

Também se editou a Medida Provisória nº 482, de 10 de fevereiro, que orientará a aplicação de contramedidas em propriedade intelectual, e publicou-se a Resolução Camex nº 16, de 12 de março, que iniciou procedimento de consulta pública para colher manifestações dos interessados sobre a lista de possíveis medidas de suspensão de concessões ou outras obrigações relativas aos direitos de propriedade intelectual a serem aplicadas pelo Brasil

O contencioso entre os dois países sobre os subsídios ao algodão é emblemático e, por isso, tem sido acompanhado com atenção pelos membros da OMC. Essa disputa comercial não é importante somente em termos de valor (é o segundo maior montante de retaliação já reconhecido), mas também porque o procedimento de retaliação cruzada autorizado pelo OSC pode inaugurar o uso desse tipo de medida e tornar-se importante precedente para levar ao cumprimento das normas de comércio pelos países membros da OMC.

Mais que tudo, o desfecho desse caso é importante porque revigora as decisões da OMC pelo fortalecimento institucional das disciplinas multilaterais de comércio entre seus 153 países membros.

Miguel Jorge é ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.