Título: Um leilão artificial para a polêmica Belo Monte
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/04/2010, Opinião, p. A14

O governo se comportou como aprendiz de feiticeiro no leilão da usina hidrelétrica de Belo Monte e não se sabe ainda quais serão as consequências de articulações apressadas e ofertas de dinheiro público generosas. Em condições normais, um projeto como esse já é imensamente polêmico. Com o início da campanha eleitoral, em que o governo parece ter colocado a licitação como peça de propaganda de sua candidata e a oposição busca argumentos que evitou no passado, delimitar claramente as vantagens, desvantagens e alternativas à obra tão complexa torna-se quase impossível.

O Planalto manobrou temerariamente na questão. O governo montou um consórcio de empreiteiras, o Norte Energia, que foi o vencedor, mas de cacife financeiro a demonstrar e que já está à procura de uma grande construtora. As maiores empresas do setor, como Camargo Corrêa e Odebrecht, não consideram o preço de R$ 19,6 bilhões para a obra e o estimaram em R$ 30 bilhões, valor mais de 50% superior. Outra gigante, a Andrade Gutierrez, em aliança com a Vale e a CBA, do grupo Votorantim, era a favorita na disputa artificial e fez oferta muito próxima da tarifa máxima de R$ 83 por MW/h. No final, a Norte Energia ofereceu deságio de 6,2%, tarifa de R$ 78 e venceu. O leilão durou sete minutos, pouco menos do que levou o consórcio vitorioso para começar a se desmanchar. A Queiroz Galvão, a maior das construtoras no grupo, decidiu se retirar e outras empresas possivelmente seguirão o mesmo caminho.

Pelos arranjos pós-leilão, a surpresa de um consórcio que começa a ruir com a vitória ficou reservada apenas a quem tenta pensar logicamente. Novos atores já estavam em cena antes mesmo do leilão. Fundos de pensão e o FI FGTS colocarão seu dinheiro na obra, enquanto CSN, Gerdau e Braskem serão convidadas a fazer o mesmo. Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez poderão, afinal, participar das obras. O que os artífices do leilão queriam era garantir o preço da obra e deixar o risco ao sabor dos contratantes. Isso, aparentemente, foi feito, evitando-se salgadas contas provenientes de gastos extraordinários.

Havia formas mais transparentes de fazer Belo Monte. Se apenas um consórcio apareceu, como foi o caso inicial do Belo Monte Energia, o governo tinha duas opções. Ciente de que uma redução de preços era então inviável, poderia conceder a obra pelo preço máximo ao único disputante ou cancelar a licitação e realizar ele mesmo a usina. A estatal Chesf tem 49,98% de participação, ao qual se somará o dinheiro dos fundos de pensão de empresas públicas, formando maioria acionária. O BNDES financiará 80% da obra, cerca de R$ 13,5 bilhões, a juros subsidiados de 4% por um período de 30 anos. O consórcio é estatal e a maior parte de financiamento, público.

Para licitar a qualquer custo Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica do mundo, e colocar nela a estampa do governo Lula, atropelou-se a história. A infraestrutura do país foi sucateada e o Estado não se meteu mais em grandes obras por falta de recursos. De repente, o dinheiro apareceu em abundância e, melhor ainda, a custo civilizado e de longo prazo. Depois de receber R$ 180 bilhões do Tesouro, o BNDES dará crédito a Belo Monte com juros camaradas e financiará a universalização da banda larga. Não há milagre: o velho Tesouro emitirá títulos para capitalizar o banco e bancar subsídios, aumentando a dívida pública bruta brasileira, de 63,1% do PIB (em fevereiro).

Após a improvisação do leilão, que não eliminou as dúvidas se Belo Monte será realmente construída, resta a realidade. Só há grande potencial hídrico adicional para se produzir energia limpa agora na Amazônia. Cabe à sociedade decidir, após pesar vantagens, riscos e as alternativas, ambientalmente nocivas.

O festival de hipocrisia de alguns críticos do governo, eleitoralmente engajados, pouco ajuda a esclarecer a questão. As mesmas forças que alardeavam o perigo da falta de energia devido ao atraso no cronograma de obras, que criticavam o Ibama porque segurava as licenças ambientais e que subestimavam os danos ambientais do projeto, agora dizem, sem enrubescer, que o governo passou por cima do Ibama, que a União foi apressada em realizar o leilão e calaram-se por conveniência sobre a equação energética, que continua desafiadoramente em aberto.