Título: Crises facilitam reformas
Autor: Balcerowicz, Leszek
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2010, Opiniao, p. A19

Chave para superar o problema criado pela crise estará na forma como sua origem for percebida.

Episódios como a crise financeira atual perturbam gravemente o crescimento econômico. Mas a pergunta que deveríamos estar formulando refere-se ao impacto de episódios como esse sobre o desenvolvimento de longo prazo. E essa pergunta, surpreendentemente, atraiu pouca atenção. As teorias de crescimento tradicionais se concentram em forças sistemáticas - por exemplo, acúmulo de capital, emprego e mudança técnica - que, por definição, operam o tempo todo, embora com diversos graus de intensidade. Algumas teorias também consideram fatores institucionais subjacentes como propriedade privada, concorrência de mercado, encargos tributários e regulatórios, e o nível do Estado de direito. Outra corrente de pesquisa lida com gestão de crises, mas sem examinar o impacto sobre crescimento de longo prazo. No caso de uma crise financeira, isso geralmente inclui alívio fiscal e monetário, bem como operações de resgate para instituições financeiras de maior porte. A abordagem dominante para gestão de crises tem sido de curto prazo e, como foi amplamente demonstrado durante essa crise mais recente, está baseada no que chamo de doutrina justificadora da intervenção. A doutrina sustenta que, da mesma forma como jamais deveríamos nos preocupar por ter despejado muita água para apagar um incêndio, sejam quais forem as medidas de gestão de crises adotadas, elas serão justificadas, pois as alternativas terão sido piores e até poderiam ter provocado uma catástrofe e/ou um colapso dos mercados financeiros. Mas a metáfora do incêndio desconsidera questões elementares, como assegurar que medidas anticrise não enfraquecem as forças da recuperação do mercado, ou como medir as consequências de longo prazo de tais medidas. Esse último problema só recentemente começou a despontar em debates sobre estratégias de "saída" de níveis extremamente elevados de endividamento público e de base monetária. Integrar essas correntes distintas de análise numa abordagem coerente para o crescimento econômico representa um enorme desafio tanto para formuladores de políticas públicas como para acadêmicos. Mas uma série de pontos me parece relevante na situação atual. Primeiro, considerando que crises financeiras tão profundas como a mais recente são socialmente tão custosas, é mais do que natural tentar evitá-las. Mas, a exemplo do que ocorre na medicina, isso requer um diagnóstico preciso das causas do problema. O motivo imediato para todas as crises financeiras é expansão de crédito excessiva - uma forte expansão que se esfarela. Mas os motivos subjacentes para a expansão variam de crise para crise. No caso presente, como ressaltou um relatório do ano passado, elaborado por um grupo liderado por Jacques de Larosière, um ex-diretor-gerente do FMI, um importante fator contribuinte foi uma grave deficiência das políticas públicas. Por exemplo, muitos bancos centrais seguiram a política monetária excessivamente frouxa do Federal Reserve. Outros fatores incluíram regulamentações financeiras falhas, políticas fiscais expansionistas em países como Estados Unidos, Reino Unido e Irlanda, uma ausência de regulamentações prudenciais, e assim por diante. As medidas preventivas, portanto, deveriam se concentrar nessas falhas das políticas públicas em vez de se degenerarem, transformando-se em hostilidade em relação aos fundos de hedge e outros instrumentos de private equity. Meu segundo ponto é que existem vários canais econômicos óbvios por meio dos quais grandes expansões que se esfarelam afetam o crescimento. Eles incluem aumento no desemprego, redução dos excessivos encargos da dívida e, portanto, dos gastos movidos a crédito, a reestruturação de setores que se expandiram em reação ao excesso de gastos, e a restrição da concessão de empréstimos por instituições financeiras demasiadamente endividadas. Não existem políticas que possam suspender todas essas vinculações sem prejudicar o crescimento de longo prazo. A expansão fiscal continuada certamente não é a resposta, já que ela acaba prejudicando o gasto privado e também o investimento empresarial. Há reformas, porém, que podem facilitar o ajuste econômico e, portanto, aliviar o sofrimento social combatendo o crescimento no desemprego de longo prazo. Essas reformas incluem medidas para remover os rigores do mercado de trabalho enquanto também aceleram o conserto dos balanços patrimoniais dos bancos. A velocidade da recuperação econômica basicamente refletiria até que ponto essas medidas foram tomadas. Um terceiro ponto, destinado a todos exceto aos que ainda acreditam num almoço grátis, é que as implicações de emprego e crescimento decorrentes dos compromissos de um país na área da política de mudança climática precisam ser cuidadosamente analisadas. Multiplicar o número de encargos que incidem sobre uma economia não é a melhor política a ser instituída na esteira de uma crise de vulto. Quarto, é difícil superestimar a importância da disciplina fiscal em relação ao crescimento de longo prazo. É fácil demais encontrar exemplos de países que sofreram devido à expansão fiscal prolongada. Da mesma maneira, não consigo imaginar nem uma única economia cujas perspectivas de crescimento de longo prazo tenham sido prejudicadas por excesso de mesquinhez fiscal. Dado o legado fiscal da crise atual, nenhum esforço deve ser poupado para se atrelar a disciplina fiscal firmemente nos países da União Europeia. Medidas institucionais como estruturas fiscais e limites ao endividamento público podem ajudar muito. No fim das contas, porém, a opinião pública será aquela que determinará as posturas fiscais do governo, daí que uma opinião pública fiscalmente conservadora será um grande trunfo econômico, já que ela inibirá a prodigalidade dos formuladores de política. Meu ultimo ponto é que reina um amplo consenso de que crises, embora desagradáveis, também facilitariam reformas estimuladoras de crescimento. Esse nem sempre é o caso, porém, à medida que as conclusões extraídas de uma crise dependem em grande parte daquilo que o público percebe como sendo a causa da crise. Se a opinião pública responsabilizar as reformas de mercado iniciais pela crise atual, as lições políticas poderão rumar na direção errada. Esse foi o caso na Rússia em 1998 e na Argentina, em 2000: nos dois casos, grande parte da opinião pública culpou as reformas anteriores pela crise, ainda que ambas tenham sido causadas por irresponsabilidade fiscal e reformas insuficientes. Desta vez, igualmente, a chave para superar a difícil herança da crise estará na forma como suas origens forem percebidas. Se a opinião pública atribuir a crise a erros de política ou a falta de reformas, existe uma possibilidade de que as lições políticas corretas sejam aprendidas, e que resultem em sólidas políticas de crescimento.