Título: Cresce a cobrança pela água, mas há críticas aos preços
Autor: Adeodato, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 22/03/2010, Especial, p. F2

de São Paulo Por conta da Amazônia, a maior bacia hidrográfica do planeta, o Brasil é um dos líderes mundiais em recursos hídricos. Detém 12% de toda a água que flui na superfície terrestre. Mas a sua má distribuição gera conflitos entre os diversos usos e riscos de escassez nas regiões mais populosas e industrialmente produtivas. São Paulo é um exemplo. Mais da metade da água consumida na Região Metropolitana é importada da bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, a 180 km de distância. Em troca, a Sabesp pagou em 2009 à Agência Nacional de Águas (ANA) mais de R$ 9,3 milhões - 55% do total arrecadado pelo uso daquela bacia hidrográfica por companhias de saneamento, indústrias dos vários setores e irrigação. Diante do custo para acesso ao recurso natural, mesmo pequeno se comparado ao faturamento com a conta de água de milhões de habitantes, investir para reduzir consumo e desperdício passou a ser sinônimo de lucratividade. "Transformada em cifrões, a água retirada dos rios tornou-se bem econômico, ganhou novo valor e o seu uso gera capital para melhorar a quantidade e a qualidade", diz Patrick Thomas, gerente de cobrança pelo uso dos recursos hídricos, da ANA. O modelo surgiu a partir da Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei das Águas, em 1997, que descentralizou a gestão dos rios, mediante a criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica. São fóruns regionais que reúnem poder público, usuários do setor produtivo e sociedade civil, com poderes de gerenciar conflitos, planejar o uso da água e criar instrumentos de cobrança. O sistema teve como inspiração a França, que hoje recolhe o equivalente a R$ 6 bilhões por ano, após quatro décadas de cobrança. No Brasil, existem oito comitês em funcionamento nas bacias de domínio federal, que abrangem mais de um Estado. Outros 150 atuam em rios estaduais. Um dos mais antigos é o do Ceará, criado em 1996. No nível federal, apenas duas bacias - a dos rios Paraíba do Sul e do Piracicaba-Capivari-Jundiaí - cobram pelo uso da água. Nessas regiões, desde 2003 foram arrecadados R$ 108 milhões, 80% investidos em infraestrutura para reduzir a poluição, além de projetos para reflorestar margens dos rios e recuperar erosão. "É preciso ir além para melhorar o modelo e acelerar as obras", diz Thomas. Novas regras para o repasse de recursos estão sendo estudadas. Serão criados mecanismos financeiros que obedecem à "lógica do prêmio", explica. "O empreendedor só receberá o recurso da cobrança depois que a obra estiver concluída, evitando atrasos e operação ociosa das estações de tratamento de esgoto." Em outra iniciativa, o dinheiro arrecadado abastecerá uma linha de crédito com taxas atrativas para investimentos privados na racionalização do consumo e redução dos efluentes industriais para além do que exige a lei. Os critérios dependem das decisões dos comitês de bacia. Um dos objetivos, segundo Thomas, é ampliar os recursos adicionais investidos como contrapartida contratual das empresas - valores extras que até 2009 atingiram R$ 63 milhões, superando em 81% os recursos provenientes da cobrança. O modelo se replica. A bacia do rio São Francisco já decidiu formalmente cobrar pelo uso da água ainda em 2010. O principal pagador será o Ministério da Integração Nacional, por conta do desvio do rio para abastecer o semiárido nordestino, na obra de transposição. A partir de agosto, será pago um centavo e meio de real por mil litros, o que representará R$ 12,5 milhões por ano a serem repassados para saneamento, controle de erosão, educação ambiental e outras iniciativas. O restante da cobrança será coberto por companhias de saneamento (65%), indústrias (23%) e a agricultura irrigada (11%). Em 2011, segundo previsão da ANA, será a vez da bacia do rio Doce (MG e ES) iniciar a cobrança, que depois deverá ser estendida aos rios Grande e Paranaíba (GO, DF e MG). Apesar dos avanços, o sistema é alvo de críticas. "Qual o real valor da água?", pergunta a pesquisadora Vanessa Gonçalves, que desenvolve trabalho de doutorado sobre o tema na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. "Saber precificar esse recurso natural é essencial para garantir o uso sustentável." Segundo ela, os valores cobrados a partir das definições de consenso nos Comitês de Bacia "são simbólicos e devem ser questionados". O preço é estipulado com base na arrecadação que o comitê deseja alcançar e nos limites que o setor produtivo está disposto a pagar. Estudo divulgado em 2005 pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) concluiu que os valores cobrados não estimulam investimentos no controle da poluição industrial. Enquanto o custo do tratamento varia de R$ 0,32 a R$ 1,26 por mil litros, a cobrança flutua de R$ 0,01 a R$ 0,02. No Paraíba do Sul, apenas 22% dos estabelecimentos entrevistados na pesquisa do Ipea afirmaram que o sistema motivou investimentos na conservação de água. Especialistas da ANA argumentam que valores altos podem inviabilizar economicamente a cobrança pela água e seus ganhos ambientais. A agência concluirá neste ano um estudo com os usuários das bacias para medir com maior precisão o impacto do atual sistema. "Desperdiçar água hoje em dia é jogar dinheiro fora", diz Luiz Roberto Moretti, secretário-executivo dos comitês do Piracicaba, Capivari e Jundiaí, onde 101 usuários pagaram R$ 17 milhões em 2009. Desde o início da cobrança, em 2006, os recursos foram aplicados em 70 projetos de recuperação dessas bacias, principalmente novas obras para tratamento de esgoto, que receberam R$ 68,6 milhões. Um projeto inovador pagará neste ano R$ 500 mil como prêmio para proprietários rurais que conservam rios e nascentes. Segundo ele, as empresas mudaram a cultura e enxergam o recurso hídrico de maneira diferente, mas "o resultado financeiro depende do balanço entre investimentos e ganhos com a racionalização do consumo".