Título: O coletivo de brasileiro
Autor: Neri , Marcelo
Fonte: Valor Econômico, 27/04/2010, Opinião, p. A13

A vida de cada brasileiro vai melhor que a do coletivo de brasileiros, leia-se do Brasil. Essa é a impressão tirada da leitura do Gallup World Poll. Na pergunta subjetiva sobre a expectativa da satisfação de cada pessoa com a vida em cinco anos, numa escala de 0 a 10, a média brasileira é 8,78, a maior de 132 países. Já na pergunta que se refere à nota do país no mesmo período e na mesma escala, a nota cai dois pontos. Somos o nono país do mundo com maior diferença de notas individuais e coletivas. A felicidade geral da nação é menor que a soma da felicidade de cada um. Como o brasileiro pode dar uma nota tão alta para sua vida e dar uma nota tão baixa para a vida de todos? eis a questão.

A dissonância entre as percepções de vida de cada brasileiro sobre sua vida e sobre a vida de todos os brasileiros é uma marca tupiniquim, a nossa jabuticabeira. Talvez fruto dessas percepções os grandes problemas brasileiros sejam de natureza coletiva, e não individuais. Não que os últimos não sejam problemas aqui relevantes pois em todas as partes sempre o são. Porém a nossa dificuldade diferenciada enquanto nação, vis a vis as demais, está mais na relação entre pessoas. Isto é, o problema do Brasil é mais do Brasil do que de cada brasileiro. Na verdade, esse poderia ser enunciado alternativo da famosa lei de Gerson: "o brasileiro quer tirar vantagem em tudo". Por problemas coletivos temos concretamente desigualdade, inflação, informalidade, violência, falta de democracia entre outros. Mas por que chamá-los de problemas coletivos? Por exemplo, desigualdade ao contrário da pobreza é um conceito relacional que não existe no indivíduo tomado isoladamente. Não podemos dizer que uma pessoa é desigual, mas dizemos que uma pessoa é, ou não é, pobre. O Brasil não é um país pobre mas temos muitos pobres pois somos desiguais onde muitos têm pouco enquanto poucos muito têm. A pobreza brasileira resulta da alta desigualdade brasileira e não da baixa renda média brasileira. Ou seja, deriva de um problema inerente ao coletivo de brasileiro. Similarmente, a violência é de natureza relacional, um contra todos e de todos contra um. Isso se aplica tanto na agressão dos assaltos, dos homicídios como na violência do trânsito. Mais uma vez, refletem problemas de relacionamento entre brasileiros. E o suicídio não é violência? Suicídio é uma violência da pessoa contra ela mesmo, mas a nossa taxa de suicídio é relativamente baixa, em comparação a outros países "mais civilizados" como Suécia e Japão. Ou seja, o problema da violência aqui é aquela dirigida à coletividade. A informalidade é um outro problema de relacionamento de pessoas físicas e jurídicas em relação ao Estado. Problemas coletivos materializados na evasão fiscal ou na ocupação do espaço público que, a princípio, deveria ser de todos. A falta de instituições e práticas democráticas é outra dimensão mais óbvia dessa dificuldade de funcionamento em coletivividade. Finalmente, a inflação, um destaque maior, apesar de termos feito a estabilização há 15 anos, o Brasil no período 1970 a 2008 é o segundo país do mundo em inflação acumulada, só perdemos do Congo. O fenômeno da inflação guarda sempre conflitos distributivos seja na disputa entre Estado e a população em geral, na busca do imposto inflacionário encerrada na visão monetarista do fenômeno, seja na visão mais estruturalista de agricultura versus indústria ou do velho capital versus trabalho. A disputa entre diferentes atores por parcelas no bolo de renda traduzidas em reajustes dos respectivos preços, salários câmbio, impostos e tarifas públicas geraria a chamada irracionalidade coletiva.

As externalidades negativas emanadas pelo oportunismo individualista faz com que o todo seja menor que a soma das partes. Esse fenômeno é objeto de vários clássicos brasileiros como os de Sérgio Buarque de Holanda, Roberto da Matta, só para citar alguns. Agora a novidade das últimas três décadas chamadas por muitos de perdidas, é que pudemos, graças à melhora de relacionamentos, dar saltos enquanto sociedade. Senão vejamos: as décadas de 60 e 70 foram do crescimento chamado de milagre econômico brasileiro, como da ditadura iniciada em 1964. Não por coincidência, quando o crescimento começou a escassear devido ao choque do petróleo, observamos o começo da distensão política iniciada após a vitória eleitoral da oposição em 1974. O processo culmina nos anos 80, a década da redemocratização, cujo ápice foi o movimento "Diretas Já" de 1984. Terminamos os anos 1980 com eleição direta para presidente mas também com os nossos recordes históricos de desigualdade e inflação que marcariam a agenda das décadas seguintes. Os anos 90 podem ser chamados de década da estabilização após o advento do Plano Real em 1994. Já os anos 00 podem ser chamados de década da queda da desigualdade de renda já a partir de 2001. Em 2004, a redução de desigualdade vem acompanhada da volta do crescimento da economia e da aceleração de novos empregos com carteira. Ou seja, tivemos conquistas em dois de nossos históricos problemas coletivos, desigualdade e informalidade. Ao mesmo tempo consolidamos as frentes da redemocratização e da estabilidade econômica. Depois das turbulencias financeiras associadas ao pleito de 2002, a estabilidade econômica, valeu como uma espécie de segundo plano real.

Coincidentemente os pontos de transição de cada década estava em anos terminados em 4: o Golpe de 1964, a distensão política a partir de 1974, o Diretas Já de 1984, o Plano Real de 1994 e a queda da desigualdade com formalização desde 2004 (continuam depois da crise). A volta do crescimento desde 2004 torna o processo redistributivo um jogo de somas positivas onde o ganho de maiores fatias do bolo dos mais pobres não implica em perdas absolutas dos mais ricos. Fica mais fácil pensar em prol da coletividade quando perdas não estão sendo repartidas. Todas essas conquistas coletivas mais do que consolidadas parecem estar em movimento para frente, independentemente de quem comande o Brasil, pois o estoque de problemas associados, e a possibilidade de avanço, é ainda muito grande. Que novo avanço buscar para 2014 para além da Copa do Mundo de futebol, o nosso derradeiro evento coletivo? Essa é a pergunta de 133 milhões de eleitores.

Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais, é professor da EPGE, Fundação Getulio Vargas.