Título: Um salto para o futuro
Autor: Cunha, Marcelo da ; Lima, Marco A.
Fonte: Valor Econômico, 29/04/2010, Opinião, p. A14

As discussões sobre segurança energética e mudanças climáticas têm colocado os biocombustíveis em evidência

A história da cana-de-açúcar e de seus principais produtos - açúcar e álcool - no Brasil está relacionada com a própria história do país. A cultura de cana foi introduzida no território brasileiro no primeiro século de sua colonização, sendo responsável por um dos primeiros grandes ciclos econômicos do Brasil colônia. Meio milênio depois, ela se transforma na matéria prima que faz do nosso país o maior produtor e exportador mundial de açúcar, além de ser a nossa segunda principal fonte de energia primária, respondendo por 19% do total produzido em 2008. No contexto energético, a cana pode ser utilizada para produzir etanol anidro (usado misturado à gasolina), etanol hidratado (usado como combustível nos veículos exclusivos a álcool e flex fuel) e para produzir excedentes de eletricidade. O etanol combustível ganhou destaque na matriz energética nacional a partir do início da década de 1970, durante a primeira crise do petróleo. Números relacionados à produção de energia a partir da cana-de-açúcar no Brasil desde 1975 são impressionantes. Por exemplo, houve uma economia de US$ 70 bilhões devido às importações evitadas de petróleo, considerando o consumo de etanol no país entre 1975 e 2005. A energia primária contida nos produtos da cana (caldo, melaço e bagaço) em 2008 foi equivalente a 48% da energia primária da produção nacional de petróleo (a 12ª maior do mundo em 2008). Este artigo chama a atenção para o que está atrás dos palcos: o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D). O estabelecimento da posição de referência que o Brasil ocupa na mais competitiva e sustentável produção de etanol do planeta é resultado inequívoco do esforço realizado nos últimos 40 anos em P&D. Entre 1975 e 2008, por conta dos maiores rendimentos da produção de cana-de-açúcar e da produção de etanol por tonelada de cana processada, conseguimos aumentar em 125% a produção de etanol por área de cana cultivada. Ao mesmo tempo, as quedas nos custos de produção chegam a praticamente 70%. Considerando todo o volume de etanol produzido nesse período, a "economia" gerada em relação à redução do custo de produção do etanol chega a US$ 249 bilhões, representando uma economia de US$ 7,3 bilhões por ano. Por trás desses números é que residem os esforços e investimentos realizados em P&D em toda a cadeia produtiva do setor sucroalcooleiro nessa fase. Nessa primeira década do século XXI o sucesso do uso do etanol como combustível no Brasil atravessa uma nova fase de expansão. A consagração dos veículos flex fuel trouxe ao consumidor a possibilidade de poder usufruir o benefício do preço inferior do etanol em relação à gasolina, sem correr o risco do fantasma do desabastecimento. No atual contexto global, as discussões a respeito da segurança energética e das mudanças climáticas têm colocado os biocombustíveis em evidência, em especial o etanol por ser o mais promissor no momento. Com grande potencial para substituir parte da gasolina consumida no mundo, o debate sobre a possibilidade de tornar o etanol uma commodity carrega interesses claros e evidentes do Brasil. Com um olhar estratégico dirigido para o futuro energético, os países desenvolvidos têm realizado investimentos expressivos em P&D no que é denominado biocombustível de 2ª geração, particularmente na pesquisa relacionada à produção de etanol a partir de materiais lignocelulósicos, que ampliaria largamente o leque de matérias-primas para produzir etanol. Para os norte-americanos, aumentaria o potencial de produção a partir dos resíduos do milho; para o Brasil, o uso do bagaço excedente e da palha retirada do campo poderia aumentar a produção em torno de 50%, sem a necessidade de ampliar a área cultivada. O desenvolvimento da tecnologia de produção de etanol de 2ª geração exige aprofundamento científico. Isso representa uma oportunidade para o Brasil participar da construção de uma agenda científica mundial diretamente ligada aos seus interesses tecnológicos. Consciente da importância que o desenvolvimento da tecnologia dos combustíveis de 2ª geração trará ao país, o Ministério de Ciência e Tecnologia inaugurou em janeiro o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), que está voltado a manter a liderança nacional na produção sustentável de etanol a partir da cana-de-açúcar. Para realizar suas pesquisas em nível molecular, essencial para o salto tecnológico requerido, o CTBE foi construído dentro do complexo do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais - CNPEM, localizado em Campinas-SP, podendo contar com o apoio da sua sofisticada infraestrutura e corpo de cientistas. O CTBE olha a cana-de-açúcar como uma fonte de carbono que pode ser transformada em combustíveis e nos mais diversos produtos para as indústrias alimentícia, química, farmacêutica e outras, consolidando as usinas em biorrefinarias. Resultados iniciais obtidos com uma ferramenta de análise em desenvolvimento no CTBE - a Biorrefinaria Virtual de cana-de-açúcar - têm mostrado que a rentabilidade das biorrefinarias de 2ªgeração pode ser superior às que atuam exclusivamente na 1ª geração. No momento em que o mundo passa por discussões a respeito de sua própria sustentabilidade, o posicionamento estratégico com relação à importância do investimento em pesquisa e tecnologia em biocombustíveis se manifesta claro na observação do comportamento dos países desenvolvidos. A opção decisiva do Brasil em investir em Ciência e Tecnologia em uma área na qual o país tem experiência e aptidão exuberantes é sinal evidente da visão madura daqueles que percebem que não basta vocação para garantir a liderança. Marcelo Pereira da Cunha engenheiro mecânico, atua nos Programas de Sustentabilidade e Avaliação Tecnológica do CTBE. Marco Aurélio Pinheiro Lima é professor titular do Instituto de Física da Unicamp e diretor do Laboratório Nacional do CTBE.